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Publicado por em mar 23, 2014 em Artigos |

Zulmira, Romana, Dora, Fernanda…

Por Ivonete Pinto

Nove em cada dez textos que têm Fernanda Montenegro como tema, lamentam a dificuldade que representa falar de um mito, de alguém cujo talento não cabe em adjetivos. Este texto não se furta a este lamento, mas opta então, sem o compromisso de dar conta de filmografia tão rica, falar apenas de alguns trabalhos da atriz. Um recorte injusto talvez, precário certamente, porém com o objetivo claro de, ao analisar alguns filmes, chamar a atenção do leitor para um talento duplo de Fernanda, aquele que diz de suas escolhas e de sua força em cena.

Mais do que carisma, Fernanda Montenegro possui uma força que se impõe, um ímã que atrai nosso olhar para uma espécie de epicentro que se estabelece no espaço ocupado por ela no quadro. E não importa com quem divida a cena, é para ela que olhamos. Não muitas atrizes no mundo têm esse poder, talvez uma Vanessa Redgrave, uma Anna Magnani, mas no caso delas, essa capacidade veio com o tempo, com o acúmulo de filmes. Diferente do caso de Fernanda. Já em A fFalecida (Leon Hirszman, 1965), seu filme de estreia, fazendo o papel de Zulmira, nosso interesse está no que ela diz, para onde ela olha, para a intenção de seus gestos, muito embora contracene com atores também carismáticos. Seria possível afirmar que, nela, a total consciência da própria presença no quadro, veio do palco do teatro, constituído naturalmente de uma moldura. Mas não convém esquecer que a dinâmica é outra: da projeção da voz ao tamanho do gesto, da intensidade do olhar à noção de timing de um plano, a atuação para cinema requer outras ferramentas, outros talentos.

Fernanda estreou em A falecida dominando o espaço e o tempo. O convite do produtor Joffre Rodrigues veio cheio de dedos, pois se julgava que ela, apesar de anteriormente ter feito Nelson Rodrigues no teatro (O beijo no asfalto, 1961) não aceitaria o papel. Imaginava-se que a grande dama do teatro não faria a suburbana Zulmira. Ou seja, antes de fazer o primeiro filme, ela já era respeitada e de certa forma cultuada. Além do mais, era também a estreia em longa-metragem de Leon Hirszman, o que poderia significar insegurança para atuar nesse novo meio. No entanto, a introjeção da personagem Zulmira encontrava como ponto de apoio as origens da atriz. Ela viveu no subúrbio carioca, fase de sua biografia sempre lembrada com orgulho, principalmente a convivência com a avó materna. As histórias de pobreza da família marcaram para sempre a visão de mundo de Fernanda, que aliás não nasceu Fernanda, nasceu Arlette Pinheiro Esteves da Silva. Tirando-se o Pinheiro Esteves e o “t” duplo do Arlette, sobra algo deveras distante do imponente nome artístico que escolheu adotar, porém bem próximo do universo de A falecida.

A falecida, uma das mais bem sucedidas adaptações de Nelson Rodrigues para o cinema, nos legou cenas memoráveis protagonizadas por Fernanda, mas provavelmente a sequência do banho de chuva entrou para a história do cinema brasileiro como a mais notável deste filme. A água, que no sistema de signos remete à libertação, à pureza, encontra no rosto de Fernanda uma felicidade estranha. A realização da cena é perfeita: num travelling circular, Fernanda rodopia com a expressão de um gozo arrevesado, que pactua com a pulsão de morte. Funciona como o ponto de virada entre o querer morrer e o saber que vai morrer − e ela está feliz por isto.

Por contingências da produção, a sequência foi rodada em tomada única, com cortes internos na montagem, sendo que o diretor Hirszman deu apenas uma instrução básica: “vai até eu dizer corta”. E Fernanda/Zulmira, linda e desatinada, entregou-se à câmera de Dib Lutfi e foi até o “corta”. Em sua moral peripatética, a personagem é capaz de dizer coisas do tipo “mulher que beija de boca aberta é sem vergonha”. É puro Nelson Rodrigues, mas há também algo de Medeia ali, algo de fora de controle, que rompe limites. Por sinal, Fernanda já foi a mulher que mata os filhos para atingir o amado Jasão.

Sua Medeia eletrizante, infelizmente, não nos é acessível, pois estava num caso especial da TV Globo dirigido por Oduvaldo Vianna Filho em 1973. E este exemplo de trabalho para a TV, onde podemos somar novelas que deixaram saudade, como Guerra dos sexos (1983) e Cambalacho (1986), ambas de Sílvio de Abreu com direção de Jorge Fernando, nos permite sugerir que o cinema sai ganhando no extenso currículo da atriz. Seus momentos inesquecíveis no teatro são muitos, incontáveis, mas é o cinema que tem o privilégio de a eternizá-laar e de a tornará-la acessível. Graças a ele estamos vendo seus trabalhos recuperados em digital e nas próximas tecnologias que vierem. Poderemos sempre rever seus filmes, estudar e contemplar as filigranas de sua atuação. Com novelas o processo é mais complicado, ao menos para chegar ao público, e no teatro tudo fica apenas na memória de quem teve o privilégio de assisti-la.

Romana, Dora, Tránsito

São 22 filmes desde A falecida. Cada um com sua importância. De Central do Brasil (Walter Salles, 1998), ao O amor nos tempos do cólera (Mike Newell, 2009) da carreira internacional. Mas certamente a atuação mais histórica e comentada é a Romana de Eles não usam black tie (1980), outro Leon Hirszman. A sequência mais representativa deste filme, sem dúvida, é aquela em que o marido operário (Gianfrancesco Guarnieri) e ela estão conversando na mesa enquanto Romana limpa o feijão. Fernanda sempre que pôde deu o crédito da criação desta cena àa Lélia Abramo, quem primeiro fez o texto no teatro. É no cinema, entretanto, que o momento único está eternizado e é de Fermanda Montenegro que vamos sempre nos lembrar catando feijão, com seus grandes olhos castanhos e sua voz que, neste filme, é de mulher sofrida.

Da mesma forma não é possível esquecer de outro momento sublime e poderoso de Fernanda como Dora, em Central do Brasil, olhando-se no espelho de um banheiro de restaurante de beira de estrada e passando batom. Aqueles poucos segundos flagram uma atriz consciente de seu rosto, a ponto de emprestar ao personagem uma esperança que transcende àa realidade: ela, com sua velhice e falta de atrativos, tentaria despertar desejo em um homem. Temos piedade da heroína Dora em sua jornada de transformação.

Central do Brasil, que lhe rendeu o Urso de Prata de melhor atriz no festival de Berlim e a indicação ao Oscar, tem o mérito de ser considerado pela atriz como um filme particular, desses que não se repetem. A repercussão internacional da obra deu àa Fernanda uma experiência de enorme dimensão. Viagens para lugares distantes, entrevistas para o mundo todo, propostas de trabalho sem- fim.

O reconhecimento internacional pega uma Fernanda madura, mais consciente do que nunca de que instantes de celebridade são pífios e podem carregar armadilhas. Neste sentido, convém falar de um dos talentos de Fernanda, que está em saber o que recusar. Após a indicação ao Oscar, lhe ofereceram papéis de “chicana” e até de iraniana. O único filme internacional que aceitou fazer e que vale o registro foi O amor nos tempos do cólera, baseado no livro de Gabriel Garcíia Máarquez. Embora não seja um filme à altura de seu talento, Fernanda tem uma presença marcante, com um personagem que se destaca, que é Tránsito, a mãe de Florentino Ariza, vivido por Javier Bardem.

Ok, décadas atrás, em função da turnê de uma peça, Fernanda não aceitou fazer em Terra em transe (1967), o papel que viria a ser de Glauce Rocha, em função da turnê de uma peça. Mas teria Fernanda espaço para criação num filme de Glauber Rocha, especilmente neste, cujo diálogo com o público é um dos mais complicados? Suspeita-se que esta tenha sido uma recusa acertada, tal qual no campo da política foi o “não” que deu ao então presidente José Sarney, ao declinar do convite para ser ministra da cultura. Ela, com o caráter e a elegância que lhe são peculiares, disse que não era superior a ninguém ao não aceitar o cargo político, mas nós, seus admiradores, podemos afirmar que Fernanda Montenegro é superior, sim. E ficamos aliviados ao não vê-la despachando em Brasília, sendo obrigada a ceder aos compulsórios conchavos da política, seja de que partido for.

Escolhas e Recusas

Nem todos os momentos são gloriosos. Não por responsabilidade sua, mas algumas situações, em alguns projetos, não alcançaram o resultado esperado. Em Casa de areia (Andrucha Waddington, 2005), Fernanda é exposta de uma maneira desnecessária. Em depoimento àa Neusa Barbosa para o livro Fernanda Montenegro – A defesa do mistério, da coleção Aplauso (2008), a atriz afirma que se trata de um dos melhores filmes brasileiros. Contrariando sua opinião, podemos sustentar que há aspectos problemáticos nesta produção. As personagens vividas por ela e pela filha Fernanda Torres, enfrentam uma passagem de tempo que vai de 1910 a 1969.

Fernanda faz D. Maria, depois Áurea, depois Maria, ou seja, mãe, filha e avó. Fernanda foi submetida a uma maquiagem para lhe deixar (muito) mais jovem, comprometendo a atenção do espectador, embaraçando aquele contrato de credulidade que existe nas obras de ficção de registro realista. Pois embora sejamos apresentados a um enredo com um tom que circunda o realismo mágico latino-americano (a presença de Ruy Guerra no elenco reforça esta conexão), e em que pese o teor metafórico da história, a performance dos atores é realista e implica em verossimilhança.

Este exemplo serve apenas para demonstrar que atores não fazem grandes trabalhos sozinhos, que é difícil vermos soberbas e inquestionáveis atuações em filmes com soluções questionáveis. Porém, devemos admitir, não são problemas eventuais de maquiagem que irão penhorar a ideia de que Fernanda exerce com maestria o seu talento para Escolhas e Recusas. Antes da construção de personagens e antes de doar-se às câmeras em entregas viscerais, Fernanda sabe onde arriscar, sabe reconhecer bons roteiros e bons diretores, incluindo aí os trabalhos realizados para a TV, o que faz de seu talento algo no nível da capacidade de interpretar personagens complexos. Ela é uma artista que pensa, que elabora, que mistura empirismo com racionalismo e que tem acertado ao recusar certos papéis, lato sensou.

Por isso, é sempre bom voltar ao que se aproxima ao estado da arte na filmografia de Fernanda, aquilo que encontrou na direção um talento a sua altura. Lembramos novamente de A falecida – que pode ser revisto no recente lançamento em DVD, com extras valiosos –, e a cena em que Zulmira conta ao marido, na cama, que vai morrer. “Eu sei que eu vou morrer, já não sou mais desse mundo. Mas antes eu tenho um pedido, e ao último pedido de uma morta não se recusa nada”. Fernanda dá dignidade à tragédia de uma mulher ordinária. Aliás, Fernanda consegue dar dignidade a outra personagem de matiz rodriguiana, embora o roteiro, neste caso, seja original de Arnaldo Jabor e Leopoldo Serran. Trata-se de Tudo bem (Arnaldo Jabor, 1978), a sátira que coloca duas classes sociais convivendo no mesmo apartamento, operários e classe média. Fernanda é a dona de casa Elvira, que toma dinheiro do paletó do marido enquanto ele dorme.

Podemos enfileirar os grandes momentos deste filme e em meio a eles sobressai aquele em que Elvira, vestida com uma camisola cor-de-rosa, insinua-se languidamente para o marido Juarez (Paulo Gracindo). A cena, de planos longos, envereda para Elvira falando das fezes da tia, vociferando contra o preço do feijão, do óleo de girassol, da banha de porco… e termina com ela acusando o marido de ter uma amante. São pelo menos três registros dramáticos envoltos na capa do farsesco. Paulo Gracindo era um grande ator, mas simplesmente não dá para olhar para outro ponto da tela que não seja onde está Fernanda. Ela passa de uma escala dramática para outra como que escorregando, deslizando. Ao menos essa é a primeira impressão, mas sabendo de seu empenho na criação dos personagens, no tempo dedicado aos ensaios, concluímos que a cena é resultado de muito trabalho, também. O paralelismo entre os dois filmes, A falecida e Tudo bem, está no fato das duas personagens serem delirantes e decadentes, em amplo sentido. Uma quer morrer, a outra quer ir a um motel. Uma consulta as cartas, a outra faz macumba.

E vale lembrar que, como não se trabalhava com som direto, os diálogos eram dublados e os atores que dublam, por sua vez, precisam construir dois momentos da representação. Então, há que se notar as perfeitas inflexões de Fernanda, numa unidade dramática impressionante. Ainda sobre a voz, é preciso recordar que é de Fernanda a voz de Jeanne Moreau num dos mais belos filmes brasileiros, Joanna Francesa (Cacá Diegues, 1975). E, mais uma vez, é fascinante observar as modulações que funcionam organicamente, juntando corpo e voz.

Outros trabalhos virão, outras biografias serão escritas. O importante é que os brasileiros, cinéfilos em especial, saibam que vários filmes de Fernanda Montenegro já podem ser vistos e revistos em DVD. Vê-la atuar, nas diferentes fases de sua vida, resulta num deleite que não tem preço.

Publicado na revista Filme Cultura, nº 51 / Junho 2010 – pp.52-56