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Publicado por em set 6, 2021 em Artigos |

Pelo que me consta, Eu não sou um robô

Por André Bozzetti

Em 1982, “Blade Runner – O Caçador de Andróides” nos apresentou um complexo teste psicológico para identificar se alguns indivíduos eram realmente humanos ou eram máquinas, denominados Replicantes. O exame era composto por perguntas que buscavam reações emocionais, por mais imperceptíveis que fossem, relacionadas a algumas situações ou eventos descritos pelos investigadores.

Quase 40 anos depois, a técnica utilizada se tornou teoricamente mais simples. O teste, não mais aplicado por humanos e sim pelas próprias máquinas, consegue descobrir se somos ou não robôs através da nossa capacidade de diferenciar um caminhão de um semáforo. Ou uma bicicleta de um navio. Algumas vezes, até um avião de uma faixa de pedestres. O mais inacreditável é que nem sempre somos capazes de fazer isso. Será que, assim como alguns personagens do clássico de Ridley Scott, somos andróides e não sabemos disso?

Esta reflexão que pode parecer insólita é o ponto de partida para o curta-metragem “Eu não sou um robô”, de Gabriela Lamas, vencedor nas categorias de melhor filme pelo Júri da Crítica, melhor direção de arte, melhor fotografia e melhor roteiro (em trabalho coletivo de Gabriela Lamas, Felipe Yurgel e Maurilio Almeida) dentro do Prêmio Assembleia Legislativa – Mostra Gaúcha de Curtas nesta 49ª edição do Festival de Cinema de Gramado. 

No filme, Tânia (Gabriela Lamas) se depara com esta dificuldade de responder corretamente ao teste proposto pelo computador, e começa a divagar sobre os mais variados e inusitados assuntos dentro de seu apartamento, acompanhada de uma mosca gigante.

Dentre os diversos e excelentes curtas concorrentes nesta edição do festival, “Eu não sou um robô” foi aquele que me levou para dentro do filme, trazendo uma sensação que eu não sentia desde o fechamento dos cinemas em março de 2020. Isto se deve a diversos motivos, mas talvez o mais importante seja devido ao espaço claustrofóbico no qual ele se passa, que é muito semelhante àquele no qual eu vivi (e ainda vivo) a maior parte do tempo durante esta infindável pandemia. Se as salas de cinema auxiliam nossa imersão na história com sua escuridão, tela gigante e isolamento acústico que nos afastam do mundo exterior, “Eu não sou um robô” acaba agindo no sentido oposto, no qual uma história é contada através de planos fechados e escuros dentro do reduzido espaço de um apartamento, reproduzindo a sensação que tantos de nós têm vivenciado nos últimos 19 meses, e mesclando nosso lar ao cenário do curta.

Este ambiente se torna propício para o surgimento do companheiro de Tânia em sua jornada filosófica: uma mosca gigante. É curioso como a total naturalidade com a qual a jovem conversa com o gigantesco inseto em nenhum momento gera estranheza, visto que o isolamento social em que nos encontramos é tranquilamente capaz de produzir esse tipo de abalo na nossa sanidade – para dizer o mínimo. E enquanto Tânia lida com a solidão e a resignação por sua incapacidade de comprovar sua humanidade para uma máquina, ela encontra companhia também em suas lembranças e reflexões acerca de eventos cotidianos, alguns mais corriqueiros do que outros.

E é neste quase monólogo – o homem-mosca até interage, mas permanece mais tempo como ouvinte – que Lamas nos arrasta novamente para dentro de seu filme, pois Tânia não traz conclusões sobre seus pensamentos, ao contrário, faz questionamentos que nos convidam a pensar sobre algumas coisas que, até por parecerem  – ou serem – banais, muitas vezes passam despercebidas no nosso dia a dia. É um tipo de conversa que, normalmente, só temos com pessoas com quem possuímos um nível maior de intimidade, e isso reforça a aproximação e identificação do público com a personagem. Por fim, a atuação de Lamas chega a trazer um ar quase de documentário tamanha a fluidez com que ela conta suas histórias, como se fossem memórias que surgem em sua mente e saem de forma improvisada.

Em meio a tantas belas produções concorrentes do festival que, entretanto, possuíam em sua maioria temáticas mais densas, “Eu não sou um robô” trouxe leveza e até certa doçura à mostra de curtas. No final das contas, mesmo que não tenha conseguido comprovar, Tânia se mostra indubitavelmente humana enquanto reflete em suas palavras e trejeitos tanto do que estamos sentindo. Torço para que esse sentimento encontre logo um fim, para que estas conversas possam voltar a acontecer não mais com moscas gigantes ou outros seres imaginários, mas com aqueles amigos dos quais estamos tão distantes há tanto tempo, e que os filmes possam voltar a ser assistidos – com segurança – na casa deles, que são as salas de cinema.