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Publicado por em mar 25, 2014 em Artigos |

Paris vê as novas histórias sobre a música do Brasil

por Mônica Kanitz

03Paris recebeu, em maio, mais uma edição do já tradicional Festival du Cinéma Brésilien. A mostra, organizada pela produtora Katia Adler, da Jangada Association, ocupou uma das salas do Cinema Nouveau Latina, no Marais, e ofereceu duas semanas de programação: a primeira exibiu filmes de ficção e a segunda apresentou documentários, vários deles ainda inéditos no circuito comercial brasileiro.

A seleção de documentários refletiu a tendência da atual produção brasileira e reuniu vários títulos sobre a música do Brasil. O público da Nouveau Latina pôde ver alguns títulos já conhecidos dos brasileiros, como os filmes sobre Herbert Vianna, Titãs, Arnaldo Baptista e Caetano Veloso, mas também assistiu a algumas novidades interessantes: Continuação, sobre o trabalho do pernambucano Lenine, Dzi Croquettes, que recupera a trajetória do emblemático grupo dos anos 1970, e Filhos de João: Admirável Mundo Baiano, também um filme-memória sobre a cena cultural da década de 70. Dzi Croquettes abriu a programação do festival com casa lotada, contando com a presença dos diretores e alguns integrantes do grupo, enquanto o documentários sobre os Novos Baianos encerrou a mostra. Lenine, que é um dos artistas brasileiros mais prestigiados na França, esteve em Paris para apresentar o filme, junto com o diretor.

Continuação é um filme assinado pelo jornalista carioca Rodrigo Pinto e “surgiu” a partir da gravação do CD Labiata, álbum mais recente de Lenine. A princípio, o jornalista não tinha a intenção de fazer um filme, já que havia sido contratado para gravar as vinhetas de divulgação do novo disco. O detalhe é que Lenine é um artista incansável, que pensa muito e troca ideias o tempo todo com as pessoas que trabalham com ele. Rodrigo viu nisso um material riquíssimo e que não seria possível aproveitar em vídeos curtos e promocionais. “O Lenine é um artista muito interessante, que cria o tempo inteiro. E eu quis mostrar isso a partir deste material”, diz Rodrigo Pinto. O grande acerto do jornalista foi não ter dado um contorno linear nem biográfico à trajetória de Lenine, um artista que está na faixa dos 50 anos e vive um dos melhores momentos da sua carreira. O foco do filme está no processo de criação do disco e suas influências. Portanto, nada de depoimentos bajuladores, nada de fotos antigas, nada de imagens de arquivo. É Lenine quem conduz a história – ou melhor, o processo de gravação de Labiata– avaliando acordes, harmonias, letras, rimas e instrumentos, chegando a um consenso sobre como serão a capa do novo CD e o encarte do vinil, discutindo o cronograma de gravações, interagindo com os músicos em momentos sérios ou descontraídos. Sempre falante e bem-humorado, Lenine se aproxima do espectador quando discorre longamente sobre o prazer que é tocar um disco de vinil (“meu filho nunca entendeu essa coisa de ter que virar o disco”) e sobre sua relação com a internet (“eu preciso ter foco, senão me perco na frente do computador”).

Outro momento descontraído do fime é a visita de Arnaldo Antunes, que aparece para conferir a gravação da música Acredite e acaba contribuindo para o registro final. Se o talento e o processo criativo de Lenine falam por si durante a produção do CD, é o prório artista quem revela parte do seu percurso em alguns momentos mais íntimos. Em seu sítio, no meio do mato, Lenine conta que desistiu de ser arquiteto quando conheceu o Rio de Janeiro e se encantou com a beleza da cidade. É neste mesmo lugar que ele explica o quanto o silêncio e as imagens são importantes para a sua música, que ele prefere chamar de “crônica do cotidiano”, e apresenta sua coleção de orquídeas, um hobby que cultiva há muitos anos. Num momento-família, ele visita o pai e a mãe em Recife, o que rende uma das passagens mais emocionantes e divertidas do filme. O título Continuação vem de uma das músicas do disco, mas também se refere a outro aspecto importante deste momento da trajetória de Lenine: ele gravou a canção com seus três filhos, passagem que revela um pouco da cumplicidade familiar e que antecipa, talvez, uma continuidade do trabalho do artista.

Filhos de João: Admirável Mundo Baiano, do cineasta Henrique Dantas, recupera a história de um dos grupos relevantes da música brasileira dos anos 1970. Essencial quando se fala em brasilidade e em irreverência musical, os Novos Baianos são fundamentais para se entender a atual cena musical brasileira e souberam captar toda a efervescência dos anos anteriores. Também foram audaciosos: dentro do espírito libertário da época, eles alugaram um sítio na Zona Oeste do Rio de Janeiro e construíram sua “sociedade alternativa”, onde as únicas questões essenciais eram fazer música e jogar futebol. A vida comunitária de Moraes Moreira , Luiz Galvão, Baby Consuelo, Pepeu Gomes, Dadi, Paulinho Boca de Cantor era uma festa compartilhada por muita gente conhecida da cena cultural da época, mas seu “deus” era um um só: João Gilberto. Foi o intérprete de Chega de Saudade quem conduziu os “afilhados” baianos pela descoberta da música brasileira mais genuína e despertou neles o gosto por tocar cavaquinho e tamborim e compor sambas e chorinhos. O filme de Dantas é construído principalmente a partir de depoimentos, a maioria de integrantes do grupo. Apesar deste formato convencional, o filme garante o interesse do espectador por conta das histórias hilárias e irreverentes que vão surgindo na tela. Uma delas: eles gostavam tanto, mas tanto, de futebol, que gastavam quase todo o dinheiro que ganhavam em shows comprando uniformes para o time dos Novos Baianos.

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Em outra, eles lembram de quando João Gilberto apareceu pela primeira vez no apartamento onde viviam, antes de serem famosos. Era madrugada, JG estava de terno, e os músicos, que viviam em farra intermináveis, pensaram que fosse a polícia. Mas enquanto os minutos do filme vão passando e João Gilberto não aparece em cena (o diretor tentou, mas o baiano não quis gravar seu depoimento) , quem dá conta conta do recado é Tom Zé. Inspiradíssimo, o compositor vai desfilando sua erudição e seus conceitos surpreendentes para falar da importância dos Novos Baianos e faz uma costura deliciosa do filme. Afinal, foi ele quem apresentou Moraes Moreira para Galvão e acompanhou a trajetória do grupo, que, segundo ele, viveu uma “gravidez cósmica de juventude” e se reunia em torno de João Gilberto como o “apostolado em torno de Cristo”. Outra preciosidade do documentário é colocar na tela trechos do filme que Solano Ribeiro produziu para uma televisão alemã em 1973, onde se revela a rotina dos Novos Baianos. É o único testemunho desta época, desta comunidade hippie e libertária, onde viviam os artistas e suas companheiras, os filhos, amigos, visitantes e quem mais precisasse. Eles não tinham rotina, não se preocupavam com dinheiro, dividiam as tarefas democraticamente e eram músicos em pleno auge criativo. O mais interessante é que o grupo não acabou por causa da situação política ou da censura. Os desentendimento começaram quando as vidas particulares se tornaram mais importantes que o grupo. “Na verdade, a gente queria mudar o sistema. Mas ele é mais forte”, conclui Bola Morais. Em tempo: Baby Consuelo chegou a gravar seu depoimento para o filme, mas não autorizou a utilização do material.

Ousados também eram os Dzi Croquettes, provavelmente um dos grupos menos lembrados dos anárquicos anos 1970. Recuperar a trajetória destes atores-cantores-bailarinos é o principal mérito do filme, que tem a direção de Tatiana Issa e Raphael Alvarez. Capitaneados pelo genial bailarino Lennie Dale, os Dzi Croquettes eram 11 homens que no palco se transformavam em androgenia pura: corpos pintados, pouquíssimas roupas (femininas), números de dança irreverentes e muita ironia. Eles se aproximavam dos Secos & Molhados na proposta estética de usar o corpo para denunciar a opressão, mas em termos de conteúdo o deboche era total. No Brasil, os Dzi Croquettes eram um sucesso absoluto e influenciaram boa parte daquela geração de artistas, conforme os depoimentos de gente como Marilia Pera, Ney Matogrosso, Nelson Motta, Miele, Betty Faria, e também de artistas que vieram depois, incluindo Pedro Cardoso, Claudia Raia. Vale lembrar que As Frenéticas se assumiram como uma versão feminina dos Dzi Croquettes e estiveram à frente de um movimento cultural que tinha como modelo a proposta artística do grupo – os fãs se vestiam como eles, falavam como eles, se comportavam como eles. Como o Brasil não cabia mais no sucesso (e na censura) dos Dzi Croquettes, eles resolveram tentar a sorte na Europa. Depois de uma temporada em Lisboa, se tornaram a grande atração da noite parisiense graças a uma madrinha chamada Liza Minelli: a cantora norte-americana, no auge do seu sucesso, viu uma apresentação dos brasileiros e se encantou com absolutamente tudo. Chamou amigos famosos e imprensa, falou bem deles em entrevistas e foi fundamental na história internacional do grupo – ela inclusive gravou um depoimento emocionado para o filme. Apesar da história fantástica destes personagens e da emoção que carrega, o documentário perde um pouco da sua energia por conta do excesso de entrevistas (são 110 minutos de projeção). Há muitos depoimentos complementares que seriam dispensáveis e poderiam dar mais ritmo para o filme, além de tempo para esclarecer melhor algumas histórias – antes de cansar o espectador.