Páginas
Seções

Publicado por em mar 25, 2014 em Artigos |

Na periferia do cinema

por Ivonete Pinto

08As extremidades marginais do cinema sempre existiram. Resistência à hegemonia do cinema americano e europeu, as cinematrografias periféricas, no entanto, só ganharam visibilidade e, eventualmente, alguma projeção, com as premiações em festivais de cinema como os de Cannes, Veneza, Berlim e Locarno, só para ficar entre os mais conhecidos, cujos programadores passaram a viajar um pouco mais longe em busca de novas linguagens, novas estéticas. Enfim, novos cinemas.

Independente do aval desses festivais, vários países mantêm produções constantes, com números, às vezes, significativamente altos, como é o caso da Índia. Países que vivem sua cultura intensamente e, com ou sem subsídios governamentais, movimentam pequenas indústrias que geram emprego, abastecem o mercado local e regional – caso do Egito – e constroem gêneros narrativos recheados de uma criatividade que encanta platéias sedentas por exotismos ou, simplesmente, cansadas de velhas imagens. Talvez seja o que vem acontecendo com o cinema da Armênia, não em termos quantitativos, mas qualitativos. Enquanto tenta reconstruir o país após a independência da ex-URSS, a Armênia comemora sua primeira pré-indicação ao Oscar de filme estrangeiro: Symphony of Silence (Vigen Chaldranyan, 2001). Uma produção sem nenhum dinheiro russo. Aliás, quase sem nenhum dinheiro.

O fenômeno Bollywood
A Índia representa uma destas cinematografias periféricas que espantam o mundo. Não vamos falar aqui de Satyajit Ray, o mestre conhecido internacionalmente e que fazia o chamado cinema de arte, sem apelos ao popular. Certamente, ele contribuiu para despertar o orgulho nacional indiano e revelar outros cineastas. O que acontece na Índia não é exatamente um fenômeno de qualidade, mas de quantidade.

Há 10 anos sua balança anual fica entre 600 e 900 filmes, empregando em torno de 400 mil pessoas em regime integral. Possui cerca de 15 mil salas de cinema, atingindo um público semanal de 100 milhões de espectadores. Naturalmente, com 1 bilhão de habitantes e ingressos a 10 rúpias (algo como 40 centavos de real), as condições são propícias, embora coabitem também os complicadores, como a língua. A Índia possui 17 línguas oficiais e mais de 200 dialetos. A maioria dos filmes é falado em hindi, produzidos em Nova Delhi (12 milhões de habitantes), a capital, e em marathi, feitos em Bombaim (18 milhões). Bombaim é a meca do cinema, a Bollywood, com dezenas de estúdios.

Também são produzidos filmes em telegu, falado no Estado de Andhra Pradesh, tamil, no Estado de Tamil Nadu, e bengali, em Bengala Ocidental, cuja capital é Calcutá. E quem viu Um Casamento à Indiana (de Mira Nair, 2001) igualmente sabe que se fala muito inglês na Índia. Não tanto como no filme, que chegou ao ponto de colocar familiares, na intimidade do lar, falando em inglês, quando deveriam falar o dialeto do Punjab (punjabi) ou hindi. Um exagero. E, em nome do sentimentalismo, a cineasta mostrou empregados de casta inferior participando da festa de casamento da família rica. Uma improbabilidade. Castas, a não ser na ficção, não se misturam. Mas a casta dos jurados de festivais internacionais não está preocupada com isto. Em Veneza deram à diretora o Leão de Ouro em 2001.

Voltando às línguas. Este complicador é tão expressivo e difícil de ser administrado que muitos produtores se sentem prejudicados quando mostram seus filmes em festivais de cinema internos. O cineasta Suresh Heblikar chutou o balde quando participou do festival de Madras. Representando o estado de Karnataka e da língua kannada, denunciou o lobby das línguas bengali e hindi para a seleção de concorrentes. Segundo ele, os filmes nestas línguas também seriam privilegiados quanto aos financiamentos do NFDC (National Film Development Corporation of India).

A solução, muito polêmica, tem sido a produção crescente em hindi, oficialmente a língua nacional, falada em Nova Delhi. Esta saída atinge a programação da TV, incluindo o telejornalismo. Mas ao mesmo tempo em que a estatal Doordarshan, de Nova Delhi, força uma mudança transmitindo só em hindi, a Televisão Educativa Via Satélite é obrigada a transmitir por duas bandas sonoras em idiomas diferentes (hindi mais o local), permitindo que o estado receptor escolha entre um e outro idioma.

A maioria dos indianos que passaram por escolas fala o hindi, além da língua de seu Estado. Os que têm o equivalente ao segundo grau falam também inglês. No entanto, o enredo dos filmes não requer conhecimentos de poliglota. 95% apresentam histórias absolutamente ingênuas, com estruturas dramáticas compreensíveis de Tucunduva a Macao. Como 95% dos 95% são musicais com muita dança, a comunicação fica ainda mais fácil.

O Egito no mundo árabe
Outra cinematografia periférica que merece destaque é a do Egito. É difundida muitas vezes (nos Estados Unidos, em especial) como “cinema árabe”, identificação correta, por um lado, porque no Egito fala-se árabe, mas, por outro, é enganosa: seria como categorizar o cinema brasileiro como “cinema português”… O Egito exibe um cinema por demais nacionalista para enquadrar-se nessa categoria de simplesmente “árabe”. Os próprios gêneros da comédia, dos musicais, do realismo e do melodrama aparecem carregados de forte nacionalismo, originado nos anos do presidente Nasser, que nacionalizou o Canal de Suez e expulsou os britânicos, entre outras medidas.

O país dos faraós não exibe uma produção tão mastodôntica quanto à da Índia. Já chegou a cem, tendo caído para 20 e depois se recuperado. Deve alcançar os 50 filmes este ano (comparando, o Brasil em 2001 ficou em 33 títulos). Mas não há dúvida que o cinema lá também é um fenômeno de massa. A euforia das platéias quando gostam de determinada cena é tanta que não se limitam ao aplauso, batem com os pés no chão e gritam numa algaravia desconcertante. Para um ocidental.

É no Egito que foi erguido o maior estúdio de cinema do Oriente Médio. A 10km das pirâmides de Gizé e inaugurado pelo atual presidente Hosni Mubarak, ocupa uma área de 3 milhões de metros quadrados. Na verdade é um complexo de 20 estúdios, a que deram o nome de Cidade do Cinema, onde funciona inclusive uma escola dedicada à sétima arte.

Em 1917, já havia 80 salas de cinema no Egito, mas somente a partir os anos 30, com o advento do som, é que o país vira líder de produção no mundo árabe. O Cairo, a capital de quase 20 milhões de habitantes (cerca de 30% da população do país), passa a ser a meca do cinema.

A influência mais notável do cinema egípcio vem dos filmes americanos. Seu período de ouro foram os anos 40 e 50, quando, a propósito, surgiu o astro Omar Shariff. O eterno doutor Jivago foi lançado pelas mãos de Youssef Chahine, o mais conhecido cineasta egípcio hoje, dentro e fora do país. Chahine, no entanto, não representa o perfil do homem egípcio. No país super muçulmano com parte da população fundamentalista, o cineasta, de 75 anos, foi criado na religião católica e, para o assombro de todos, assumiu em entrevistas sua bissexualidade. Por lá homossexualismo é crime que dá cadeia e “bi” não é exatamente um atenuante.

Os filmes de maior repercussão e bilheteria de Chahine foram Estação Central (1958), a trilogia Alexandria para Sempre (1989) e O Destino (1997). Este último, o 33º filme de sua carreira, ganhou o prêmio especial do júri em Cannes em 1997. Com muita música e dança e um ritmo quase videoclipe, O Destino propõe quebras de linguagem ao colocar os atores-cantores olhando diretamente para a câmera.

O Destino relata a história do filósofo Averróes, que na Espanha árabe do século 12 reinterpreta a obra de Aristóteles, ao mesmo tempo que questiona as interpretações vigentes do Corão. Um prato cheio para os radicais, que mandam queimar seus livros. Em tom de sátira, Chahine quer falar de intolerância, a mesma intolerância que há alguns anos atentou contra a vida do Nobel de Literatura egípcio Nagib Mahfouz. Denunciar radicalismo e fundamentalismo com ares naïf pode não atingir platéias devotas a Godard, mas Chahine precisa se valer de performances que fujam do discurso direto, até mesmo para escapar da censura.

Porém, não é fácil fugir dela. Adel Emam, diretor de sátiras políticas, que o diga. Ele vem sendo alvo da ira do governo egípcio, que vê oposição em tudo. Mas, pela sua representatividade, e larga distribuição no mundo árabe, é mais indicado contextualizar o aspecto da censura em seu ponto nevrálgico, a religião. Sempre de olho no mercado árabe, os cineastas egípcios criam numa atmosfera de auto-censura para evitar a rejeição de seus filmes por parte dos países árabes. Hani Mustafa, crítico de cinema do Al Ahram, do Cairo, diz que não lembra da última vez que viu um beijo no cinema egípcio. Não que seja proibido, diz ele, mas em países como a Argélia e a Arábia Saudita, por exemplo, um filme com beijo não entraria.

Mesmo assim, o cinema egípcio consegue – ou conseguiu – ter um mestre na categoria realismo. Foi Salah Abu Seif, morto aos 81 anos, em 1995, e que realizou mais de 40 filmes, grande parte deles considerados clássicos. Oppressor’s Day is Coming (1951), adaptado de um romance de Émile Zola, foi um marco. Talvez Abu Seif tenha necessitado da garantia do realismo francês para só então voltar-se para fontes locais. Foi a partir deste filme que começou sua parceria com o escritor Nagib Mahfouz nos roteiros, rendendo uma dezena de longas. Mesmo utilizando recursos do romantismo, Abu Seif dedicou-se a falar da consciência de classes através da experiência individual. Até hoje é ignorado pelo Ocidente, mas nunca deixou de influenciar as gerações no mundo árabe.

Assim como atualmente os canais de cinema da TV a cabo programam ciclos do indiano Satyajit Ray, Salah Abu Seif poderia receber alguma homenagem.

Cristianismo, genocídio, terremoto e cinema
A Armênia é uma ilha cristã cercada de muçulmanos por todos os lados. Esta pode ser uma boa definição em uma tentativa para esboçar o perfil deste pequeno país do tamanho da Bélgica. O que se sabe da Armênia no Brasil é mais ou menos o que eles sabem sobre o Luiz de Miranda. Nada. Nosso conhecimento sobre o país gira em torno de indagações como “A Aracy Balabanian não é armênia”?

Para entender a Armênia, é preciso saber que ela não reza a cartilha do Vaticano, mas sim possui sua própria igreja ortodoxa, tal qual a Ortodoxa Russa e a Ortodoxa Grega. E não podemos esquecer que o país é uma das ex-repúblicas socialistas soviéticas, tendo ficado independente só há 10 anos. Seu cinema está umbilicalmente ligado a URSS.

Quando a Armênia se transformou “por livre e espontânea vontade” em uma república soviética, o estava fazendo para não virar uma república turca. Sempre que sobrava uma brecha na agenda, o império turco otomano invadia a Armênia praticando suas barbáries. A maior delas foi o genocídio de 1915, que matou 1,5 milhão de armênios. Para proteger-se, a Armênia foi aceitando a proteção russa, que culminou na sua anexação em 1920.

Com o colapso soviético, o país fez sua guerra de independência. Mas, durante os 70 anos como república soviética, teve a produção cinematográfica sob os auspícios da babouska. Na capital, Yerevan, foi construído um grande estúdio de cinema, o Armenfilm, ainda hoje, mesmo alquebrado, em operação. Segundo o diretor do Armenfilm, Gevork Gevorkyan, nos áureos tempos (anos 50, 60 e 70) o estúdio possuía 1.100 empregados e produzia 8 filmes por ano em média.

Hoje o local é o retrato da Armênia: antigo, carcomido, sem pintura, com racionamento de energia. Um fantasma plantado em meio a 40 hectares de terra, sustentado ainda pelo governo, apesar da opção do país pela economia de mercado. Produz um filme por ano, tem 20 funcionários (a secretária e tradutora de Gevorkyan ganha 30 dólares por mês). Às 5 horas da tarde todos vão embora porque a luz é cortada quando escurece.

Apesar da aparência desoladora, o estúdio comemora um grande feito. Pela primeira vez um filme produzido por ele é indicado à pré-seleção do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Symphony of Silence, de Vigen Chaldranyan, foi um dos 51 indicados este ano para a Academia de Hollywood na disputa de uma das cinco vagas da categoria do Oscar. Assim como o Brasil, com Abril Despedaçado (Walter Salles, 2001), a Armênia não levou. Mas entrar numa pré-seleção já é muito para um país que faz somente um filme por ano, importa quase tudo que consome, tendo a economia em frangalhos depois da guerra pela independência e do terremoto de 1988. Graças a este terremoto, onde morreram 25 mil pessoas, muitos armênios foram juntar-se à legião de compatriotas que vivem fora do país. Um dos lugares mais procurados são os Estados Unidos, que abriga uma população de 1,5 milhões de armênios.

Um dia antes de embarcar para Los Angeles (18 de fevereiro), onde foi acompanhar a carreira do filme comprado por uma distribuidora americana (Gorman), Vigen mostra-se eufórico. O cineasta de 44 anos admite que não esperava o sucesso. “Me disseram que o Dustin Hoffman viu meu filme e adorou!”.

Com um orçamento de US$ 200 mil, Sinfonia do Silêncio conta a história de um armênio que volta ao país natal, depois de morar nos Estados Unidos como executivo bem sucedido, para comprar um manicômio. Ele foi internado no mesmo hospício no tempo em que a Armênia era comunista. Assim como existe a figura do “preso político”, lá tinha o “louco político”. Um personagem que funciona como metáfora de um país em estado terminal.

Ônibus Feliz
Enquanto Chaldranyan arruma as malas para Los Angeles, outro “yan”, Albert Mkrtchyan, divulga seu filme, Merry Bus (2000) por festivais internacionais, já tendo conquistado prêmios nos Estados Unidos, Rússia e Irã.

Mkrtchyan procura em Merry Bus uma estética mais próxima dos filmes iranianos. Seja porque utiliza uma criança como personagem principal, seja porque busca no microcosmo de um cenário as explicações para o comportamento humano universal.

Merry Bus retrata pessoas que sobreviveram a uma tragédia, o terremoto de 1988. Um menino que perdeu a família passa a ouvir a “música” que sai dos fios do telefone. Descobre que sua professora também é capaz de captar o estranho som e considera que ela, de alguma forma, faz parte de sua família. A relação dos dois recebe o contraponto do padre local, vivido pelo ator especializado em Shakespeare, Sos Sargsyan.

O que mais impressiona no cinema armênio é justamente o talento dos atores. Como eles se exercitam se a TV é incipiente e o cinema quase inexiste?

Mkrtchyan diz que o cachê da atriz foi de US$ 3 mil dólares (o filme custou US$ 350 mil em uma co-produção com Holanda e Rússia) e que realmente ninguém vive de cinema por lá. Grandes atores, como ela e Sargsyan, vêm do teatro, cuja tradição na Armênia é milenar. “Anahit é atriz no Teatro Nacional da Armênia desde 1974, como funcionária dele ganha salário fixo”, comenta Mkrtchyan.

Gevork Gevorkyan, o diretor do estúdio, completa a informação: “Na Armênia o sistema soviético persiste em algumas áreas. Na verdade estamos num período de transição entre comunismo e capitalismo, ao menos nas artes. O Estado ainda precisa sustentar certas estruturas porque a iniciativa privada tem que fazer outras coisas”.

Gevorkyan não exemplifica, mas nem é necessário. Basta sair à rua para ver a situação dos prédios, das estradas. Perguntado sobre como era trabalhar sob o regime soviético, Gevorkyan observa que como produtor está pior, pois faz menos filmes. “Mas para os diretores e roteiristas é melhor agora. Pelo menos os filmes não são censurados”, diz.

Durante os 70 anos de regime soviético, a censura política no Armenfilm foi uma constante. O diretor que provavelmente mais sofreu foi Segei Paradjanov. Pintor, músico e cineasta, era acusado pelas autoridades soviéticas de praticar um formalismo decadente e tinha seus projetos freqüentemente recusados. Quando conseguia filmar, suas produções eram censuradas. Muitas vezes foi preso, acusado de “homossexualismo” e “incitamento ao suicídio”. Com Gorbachev as coisas melhoraram, mas ele morreu em seguida, em 1990.

Um dado curioso é que Paradjanov nasceu na Geórgia, outra ex-república soviética, e só por um período morou na Armênia. É considerado armênio por uma idiossincrasia local que faz com que gente como Cher, Charles Aznavour e Atom Egoyan figurem em dicionários como armênios. São filhos ou netos de. Diz-se, inclusive, que existem 15 milhões de armênios no mundo, apenas 3,5 milhões vivendo na Armênia.

Mas há que se compreender. Afinal, um país pequeno, espremido por culturas tão diferentes e que enfrenta invasores há milênios, conservando seu próprio alfabeto, sua língua e sua religião, é admirável. E se apenas com um filme por ano eles conseguem sonhar com o Oscar, imagine fazendo mais.

Se depender do Brasil, ao menos mais um filme poderá ser contabilizado. Gevork Gevorkyan mostra um fax onde a Dezenove Som e Imagem, produtora de São Paulo, se diz interessada em uma co-produção. A direção seria do armênio naturalizado norte-americano Rouben Kochar, de quem a 25ª Mostra Internacional de São Paulo exibiu o longa Herostratus (1997). O título provisório é Road e a idéia é de que seja rodado na Armênia e no Brasil. A propósito, Gevorkyan encerra a entrevista com uma pergunta: “Cinema dá dinheiro no Brasil?”.

Artigo publicado na revista Teorema – Crítica de Cinema nº 1 (lançada em agosto de 2002). Texto de crítico integrante da ACCIRS já publicado em outro veículo da imprensa e autorizado para publicação no site da associação.