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Publicado por em out 23, 2020 em Uncategorized |

Maldito Cinema

Por Cristian Verardi, produtor e curador da Mostra A vingança dos Filmes B, especial para o site da Accirs

I Inferno Estético

Em A Linguagem secreta do cinema, Jean-Claude Carrière descreve a reação do público muçulmano diante das primeiras sessões de cinema ocorridas nas colônias francesas na África pós 1º Guerra Mundial.  Segundo Carrière, uma antiga e rígida tradição os proibia de representar a forma e a face humana, pois eram criações exclusivas de Deus. Portanto, assim que o filme começava a ser projetado na tela, temendo que estivessem cometendo uma heresia, fechavam os olhos, e assim permaneciam até o final da exibição. Em seguida Carrière lança uma questão, refletindo que não seríamos tão diferentes do público muçulmano daquele período: “Mas será que não abrigamos, no fundo de nós mesmos, algum tabu, ou hábito, ou incapacidade, ou obsessão, que nos impede de ver o todo ou uma parte do audiovisual que cintila fugazmente diante de nós”?

Sempre me fascinaram questões envolvendo os efeitos da imagética de um filme sobre o espectador, principalmente os ecos mais sombrios a reverberarem na mente do público. A comoção das pessoas que saíram em disparada com medo de serem atropeladas pelo trem dos Irmãos Lumière, quando da primeira sessão de cinema em 1895. O pavor dos que se esquivaram do tiro cinematográfico, quando uma arma foi apontada para a plateia em O Grande roubo do trem, em 1903.  Imagino os pensamentos assombrosos que afligiram aqueles que assistiram pela primeira vez as fantasmagorias de Georges Méliès.

Dos primórdios do cinema existem diversos relatos sobre as reações da audiência diante desta nova linguagem, porém, o público não demorou em perder a ingenuidade, logo assimilando os códigos propostos pela narrativa cinematográfica, sem, no entanto perder o espanto, qualidade necessária para a apreciação de qualquer manifestação artística. Porém, essa nova linguagem também carregou consigo fragmentos de um receio ancestral que afligiu as artes de todas as épocas, o receio de estar profanando regras tácitas do sagrado. Em seu ensaio “A Estética do feio”, de 1853, Karl Rosenkranz declarou, “o inferno não é apenas ético-religioso, ele é também estético”. Assim, o temor irracional de que um determinado signo imagético, acessado de maneira inadvertida, teria o poder de desencadear uma maldição sobre quem o produzisse ou ousasse manter os olhos abertos diante dele, encontrou no cinema um veículo ideal.

II Espectros Cinematográficos

Antes que os filmes se tornassem veículos do mau agouro, a literatura já explorava as possibilidades do tema numa época de transição em que o cinema começava a se popularizar como entretenimento Em 1895, mesmo ano da invenção do cinema, Robert W. Chambers publicou uma compilação de contos, onde quatro deles citavam uma peça teatral que quando encenada afetava o público de forma a conduzi-lo para a loucura e a morte. O livro contém o nome da peça, O Rei de amarelo, e tornou-se referência tanto para a literatura fantástica como para cinema, influenciando de Stephen King até John Carpenter.

Em O Espectro, conto do uruguaio Horacio Quiroga publicado em 1918, o cinema já era retratado como ferramenta capaz de propagar infortúnios. Na trama, o fantasma enciumado de um ator recém-falecido se desprende da tela de forma literal durante a exibição de um dos seus filmes para atormentar um casal de amantes, que após um desfecho fatídico também passam a assombrar os cinemas na esperança de retornar à vida percorrendo o facho de luz dos projetores. Assim reflete Guillermo, o trágico narrador do conto: “Há leis naturais, princípios físicos que nos ensinam quão fria magia é essa dos espectros cinematográficos dançando na tela, imitando nos mais íntimos detalhes uma vida que se perdeu”. 

Mas afinal, quais elementos criam o mito de um filme amaldiçoado? Em geral obras que causam impacto no público devido à natureza herética da trama, produções marcadas por tragédias no set de filmagem, em que os incidentes são associados ao tema do filme, sendo distorcidos e potencializados ao ponto de se enraizarem na cultura pop, adquirindo o status de lenda urbana. Quando no íntimo o público questiona se deveria estar assistindo aquilo, se como meros observadores também estariam ferindo leis metafísicas, quebrando tabus religiosos, é plantada uma semente de crença no fantástico. Dessa forma, quando estes espectros cinematográficos passam a assombrar o inconsciente de um público propenso a atentar às circunstâncias soturnas da história sem racionalizar causas e efeitos, está gerada a receita ideal para a criação do mito de um filme amaldiçoado. E devido a sua natureza mórbida não é a toa que o gênero horror seja o mais identificado com este fenômeno.

III Indústria de Maldições

Existem diversos filmes cercados por uma aura obscura, tal quais as experimentações underground de cinema e magia de Kenneth Anger, como Invocation of my demon brother (1969) e Lucifer rising (1972), e outros considerados portadores de alguma espécie de maldição de morte, feito obras populares como O Corvo (1994), de Alex Proyas, e até mesmo produções sem relação com temáticas do universo do horror, no caso os clássicos Juventude transviada (1955), de Nicholas Ray e Sangue de bárbaros (1956), de Dick Powell. Em comum estes filmes possuem o desfecho trágico de seus astros na vida real. Porém, entre as muitas produções mal afamadas, as mais célebres histórias são as envolvendo O Exorcista (1973), de William Friedkin, A Profecia (1976), de Richard Donner e Poltergeist: o fenônemo (1982), de Tobe Hooper.

O impacto sobre a plateia quando do lançamento de O Exorcista é compreensível, visto que sua essência se ampara na deterioração da imagem de uma criança através de situações perturbadoras envolvendo tabus religiosos cristalizados na fé das pessoas. A dessacralização do corpo de uma criança inocente (Linda Blair), que possuída por um demônio se masturba com um crucifixo de maneira agressiva e profere blasfêmias enquanto comete atos escatológicos, na época de seu lançamento causou na plateia desmaios, histeria coletiva, supostas possessões e outras reações adversas durante sessões ao redor do mundo. Para os mais crentes o filme ultrapassou de forma insensata as linhas que separam o sagrado e o profano. De fato a produção foi atribulada, e logo no início das filmagens o estúdio pegou fogo destruindo os equipamentos, o que levou o crédulo diretor William Friedkin a chamar padres jesuítas para benzerem o set. O irmão de Max Von Sydow faleceu em seu primeiro dia de filmagem, dias depois foi a vez de um técnico de efeitos especiais. O ator Jack MacGowran e a atriz Vasiliki Maliaros, morreram antes do lançamento do filme. Tanto Linda Blair como Ellen Burstyn, que interpretava sua mãe, ficaram seriamente feridas em cena, com certeza mais devido a intensidade exigida pelo rigoroso método de direção de Friedkin do que por algum intervenção sobrenatural. 

Estes eventos, no entanto, foram aproveitados pelo setor de marketing da Warner Bros, que não apenas ampliou os fatos como fabricou muitos dos boatos para instigar a curiosidade mórbida do público e incentivar a bilheteria. No fim das contas a maior vítima do filme foi a jovem Linda Blair, marcada na indústria e na vida real pela personagem. A adolescência já é complicada o suficiente sem que você seja identificada com a personificação do mal. 

A Profecia, de Richard Donner, também teve a sua cota de desastres e casualidades estranhas, e em se tratando de um filme que narrava o nascimento do Anticristo, seria inevitável que os mitos ao seu redor começassem a florescer. Ao viajar para as filmagens o ator Gregory Peck escapou por pouco de sofrer um grave acidente quando um raio atingiu o seu avião, o mesmo incidente ocorreu dias depois com o roteirista David Seltzer. Em outra ocasião Peck cancelou um voo, e o avião sofreu um desastre causando a morte de seis pessoas. A coincidência mais bizarra envolveu um membro da equipe chamado John Richardson, que sofreu um acidente de carro com sua noiva enquanto viajava pelo interior da Holanda; no desastre a garota foi decapitada. Não bastasse uma das cenas mais famosas do filme ser também uma decapitação, segundo relato do próprio Donner, o acidente ocorreu no trecho 66.6 da pequena cidade de Ommem. O título original de A Profecia é The Omen, e a referência ao número não requer explicações.

Das obras citadas, Poltergeist: o fenônemo talvez seja uma das mais inseridas na cultura pop, e a responsável por incutir o medo de palhaços em uma geração de crianças. Produzido por Steven Spielberg e dirigido por Tobe Hooper, de O Massacre da serra elétrica (1974), a história de uma família, atormentada por espíritos ao se mudar para uma nova casa, foi um grande sucesso comercial, rendendo três indicações ao Oscar em 1983, além de duas sequências e um remake em 2015. Histórias de bastidores, como a envolvendo a cena onde o garoto Robie, interpretado Oliver Robins, é estrangulado por um boneco de palhaço assombrado, contam que devido a uma falha no mecanismo de efeitos o ator teria sido quase realmente sufocado. Outra ainda mais improvável relata que a famosa sequência onde a atriz JoBeth Williams cai em uma piscina repleta de cadáveres, teria sido realizada com a utilização de esqueletos reais. Porém, duas tragédias foram determinantes para que o filme fosse alçado à condição de amaldiçoado, a morte da atriz Dominique Dunne, assassinada pelo namorado meses após o lançamento em 1982, e da garotinha Heather O’Rourke, acometida por uma doença durante as gravações de Poltergeist III, em 1988. 

No mesmo ano outra produção de Spielberg, No limite da realidade (1983), sofreria o impacto de uma tragédia, a morte do ator Vic Morrow e duas crianças em um desastre com um helicóptero durante as gravações do segmento dirigido por John Landis. O evento chocou a comunidade cinematográfica hollywoodiana, reforçando de forma rigorosa as prevenções de acidentes em sets de filmagem. Para muitos, a carreira errática de Tobe Hooper pós Poltergeist também faria parte deste pacote de maldições, e passados mais de 30 anos o mito dos esqueletos na piscina segue  vivo na mente de muitos fãs, ignorando o mérito do excelente trabalho da equipe de efeitos práticos.

IV Incubus: A Genealogia de um Filme Maldito

Produções mainstream tendem a ser mais lembradas devido a sua grande exposição midiática, mas talvez seja Incubus, uma obscura produção independente dirigida por Leslie Stevens em 1966, que contém uma das trajetórias mais bizarras, que auxiliaram a reforçar sua aura de filme assombrado.

Stevens, idealizador da clássica série de ficção científica A quinta dimensão (The outer limits), escreveu, produziu e dirigiu este estranho projeto de horror art house de aspecto satanista, filmado num portentoso preto e branco, a cargo do veterano fotógrafo Konrad Hall, e  inteiramente falado em esperanto, o que acentua o clima de estranheza da narrativa. 

A trama se desenrola em uma aldeia chamada Nomen Tuun, numa região geograficamente desconhecida no tempo e no espaço, onde coexistem humanos e demônios. Kia (Allyson Ames) é um demônio feminino portadora de traços angelicais, que atrai e assassina pecadores. Enfadada, por achar os mesmos alvos fáceis demais, resolve impor a si o desafio de corromper uma alma pura. Em sua busca encontra Marc, interpretado por um então jovem e desconhecido William Shatner, e sua irmã Arndis (Ann Atmar). Porém, o improvável acontece, Kia se apaixona, e ao sentir-se maculada pela sensação do amor, invoca um poderoso demônio chamado Incubus para se vingar de Marc. Incubus, vivido pelo ator sérvio Milos Milos, é expelido das profundezas da terra em forma humana, e no decorrer de sua missão dissemina o ódio na alma de Marc violentando sua irmã Arndis, para enfim, num confronto diante de uma igreja se transmutar em um imenso e representativo bode negro.  

A beleza e a plasticidade da elaborada fotografia, quase expressionista em seu jogo de luz e sombras, contrasta com as blasfêmias cometidas e com a simbologia satânica que impregna toda a obra desde os créditos de abertura, repletos de iconografias demoníacas. A parceria entre Stevens e Hall gerou uma fábula sinistra e original sobre as forças do amor e da escuridão.

Apesar de as filmagens terem transcorrido sem contratempos, uma sucessão de incidentes posteriores começaram a alimentar a má fama de Incubus. Doze dias após o desfecho das gravações, a atriz Ann Atmar cometeu suicídio, e alguns meses depois o ator Milos Milos, que havia interpretado o personagem título, assassinou de forma cruel a sua amante, então esposa do ator Mickey Rooney, e em seguida também tirou a própria vida. Por coincidência no mesmo ano Rooney também interpretara um diabo em Os amores de um demônio (1966), de Ettore Scola. Ainda no mesmo ano as locações do filme em Big Sur, na costa da Califórnia, foram destruídas por um incêndio. Na noite de estreia no San Francisco Film Festival, com o auditório lotado, na hora de ser exibido o som falhou. Como relatou o produtor Anthony M. Taylor em entrevista à revista Video Watchdog, ele correu desesperado até a sala de projeção enquanto o público impaciente gritava e vaiava no escuro do cinema, e encontrou o projecionista perplexo: “não há trilha sonora neste rolo”! Na plateia se encontrava o casal Sharon Tate e Roman Polanski.

Nesta mesma época Stevens e Taylor lidavam com outro problema, o chocante crime cometido por Milos Milos havia repercutido na imprensa, e estava afastando os distribuidores, que temiam ser relacionados ao assassino da esposa de Rooney, que era uma figura querida na comunidade cinematográfica. Um lampejo de esperança veio da França, onde o filme conseguiu uma breve e restrita distribuição nos cinemas recebendo críticas elogiosas. Porém, quando tentaram providenciar novas cópias descobriram que o laboratório havia perdido os copiões originais. Neste meio tempo, para alimentar ainda mais o mito em torno dos envolvidos na realização do filme, a filha da atriz Eloise Hardt, intérprete de um dos demônios, foi sequestrada e morta, num crime sem solução, que na época chegou a ser associado à Família Manson. Com a obra dada como perdida, impossibilitada de recuperar o investimento, a produtora de Stevens, chamada Daystar Productions, entrou em falência.   

Desta forma, do dia para a noite, Incubus estava sendo apagado da história, sendo jogado no limbo do esquecimento, e assim permaneceu até 1996, quando uma única cópia foi encontrada no acervo da Cinemateca Francesa, sendo restaurada e editada em DVD em 1999, após mais de trinta anos. E para abastecer ainda mais as lendas ao redor da produção, soa irônico o filme ter desaparecido em 1966 e ter sido relançado em 1999, remetendo ao famigerado número da Besta, citado no Apocalipse de São João, além de a produtora se chamar Daystar, quando pela mitologia um dos nomes de Lucífer é “Estrela da Manhã”.

Em um raro comentário sobre a sua participação, William Shatner recorda de uma situação ocorrida nas locações, quando um estranho “hippie” se aproximou da equipe perguntando sobre as filmagens. Shatner diz que o elenco e a equipe ignoraram o homem, que irritado, xingou e amaldiçoou a todos em voz alta, e que algumas pessoas da produção acreditam ser essa a fonte de todos os azares. O diretor Leslie Stevens faleceu um ano antes de poder ver enfim o lançamento de seu filme.

De concreto apesar de todos estes eventos trágicos e coincidências estranhas ao redor dos filmes citados, é que os fatos quando vistos através do filtro da racionalidade são circunstâncias naturais da vida e da fria matemática do acaso. É imensa a galeria de obras que lidam com o sacrílego, ou tiveram suas trajetórias marcadas por incidentes fatídicos, e nem por isso se tornaram malditas. Impactados pelo poder da imagem, como apontou Carrière, “abrigamos, no fundo de nós mesmos, algum tabu, ou hábito, ou incapacidade, ou obsessão, que nos impede de ver o todo…”; talvez por isso em alguns momentos não coloquemos na balança causas e efeitos, e quando na procura de padrões nos deparamos com mistérios, somos impelidos ao fantástico.