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Publicado por em set 3, 2018 em Artigos, Festival de Gramado |

A casa como extensão da vida

por Adriana Androvandi, para o Correio do Povo e ACCIRS

Entre algumas questões em destaque no 46º Festival de Cinema de Gramado, foi perceptível que a desigualdade econômica continua mobilizando a classe cinematográfica a realizar produções que servem como denúncia social e propõem uma reflexão crítica, para além da estética. Um dos temas que perpassou mais de uma produção neste ano foi o da moradia e da especulação imobiliária. A casa, vista como uma extensão da própria existência humana, é um direito inexistente para grande parte dos brasileiros.

No longa brasileiro Mormaço, de Marina Meliande, a temática foi abordada em tom de fábula, com uma atmosfera angustiante, em que o som ganhou papel especial. Alternando sequências ficcionais e documentais, a narrativa se desenvolveu em meio a situações de despejos que ocorrem especialmente quando cidades são preparadas para grandes eventos, como Olimpíadas ou Copa do Mundo. Neste sentido, o filme, ao registrar a resistência de alguns membros da Vila Autódromo, na capital fluminense, para não deixar seu espaço, serviu como base para o trabalho da protagonista, uma defensora pública (Marina Provenzzano), que luta na Justiça para um grupo de moradores do local. Este foi um dos títulos injustiçados pelo júri oficial, que deixou o filme de mãos abanando. Mereceria ao menos um Kikito de Melhor Desenho de Som pelo trabalho feito na simbiose da personagem central com o prédio onde vive.

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Cena de Mormaço, de Marina Meliande

Apesar de ser um filme sobre afetos, Benzinho, de Gustavo Pizzi, acompanha uma família que mora em uma casa antiga que está praticamente se desmanchando enquanto luta para terminar a construção da nova ao lado, no mesmo terreno, com muita dificuldade financeira. Essa mudança também carrega uma metáfora da transformação vivida pela própria família, que enfrenta um novo momento com a iminente viagem do filho mais velho para a Alemanha, convidado a treinar em um time de handebol. O longa conseguiu unir o júri da crítica e o júri popular ao receber os kikitos dos respectivos jurados, além de levar os troféus de atuação feminina, tanto para Melhor Atriz (Karine Teles) como Atriz Coadjuvante (Adriana Esteves). Conforme declarou Karine ao receber seu troféu, os pais e as mães que batalham para sobreviver, muitas vezes de forma quase invisível, são os homenageados desta obra.

Na competição de curtas brasileiros, Estamos Todos Aqui, da dupla Chico Santos e Rafael Mellim, apresentou a triste realidade de uma favela existente ao lado do porto de Santos. Os moradores vivem sob a ameaça de despejo, enquanto as riquezas do país passam nos navios ao seu lado. E aqui entrou também a questão dos trans, muitas vezes expulsos da casa da família por pais que não os aceitam. A protagonista, vivida por Rosa Luz, trouxe à tona este problema social da população LGBTI.

O longa estrangeiro Violeta Al Fín, de Hilda Hidalgo (Costa Rica/México), igualmente acompanha uma idosa que ama a casa em que cresceu e onde ainda vive, uma mansão com um belo jardim. Mas a vê ser encaminhada a leilão devido a uma hipoteca feita pelo ex-marido. Sua resistência em manter sua casa se torna uma luta pela sua independência da família, que, devido a sua idade, quer decidir tudo por ela. Violeta deseja, ao menos no ocaso de sua vida, decidir suas questões por si mesma.

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Resistência é tema da co-produção Costa Rica e México Violeta al Fin, de Hilda Hidalgo

A temática também esteve presente na Mostra Gaúcha – Prêmio Assembleia Legislativa, que teve o protagonismo feminino como um dos destaques de seus vencedores. O troféu de Melhor Filme nesta categoria foi para o documentário Um Corpo Feminino, dirigido por Thaís Fernandes, que apresentou entrevistas com mulheres de diferentes idades, que responderam a perguntas sobre, como diz o título, o corpo feminino. O filme ganhou também o troféu de Melhor Roteiro.

Apesar de não ter recebido o prêmio principal, outro destaque desta categoria foi o curta Sem Abrigo, de Leonardo Remor, que levou quatro prêmios: montagem, Atriz para Rejane Arruda, Fotografia e prêmio da Crítica – ACCIRS. A narrativa acompanha uma mulher sem-teto em sua luta para sobreviver pelas ruas de Porto Alegre. A justificativa do prêmio da crítica esteve justamente na visão de que a realidade de moradores de rua tem se tornado cada vez mais comum em metrópoles como a capital gaúcha. Esta produção, com uma montagem envolvente, nos faz caminhar ao lado da personagem, imersa em uma marginalização da qual é difícil sair.

A habitação emergiu, portanto, não apenas como cenário e locação, mas também como personagem. A falta de uma casa pode significar o mais profundo estado de abandono, não apenas da estrutura física de quatro paredes, mas do que ela pode significar: a dignidade, o aconchego, a proteção. A ausência de políticas públicas que atendam essa demanda e que contenham a especulação imobiliária tem se tornando tão gritante que não é de se surpreender que estejam se tornando alvo das câmeras de diferentes cineastas. A mensagem do longa-metragem Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, está ganhando força com o coro de novas vozes que se apresentam nas telas.