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Publicado por em set 7, 2019 em Artigos |

Vozes e corpos femininos costarriquenhos na competição de longas latino-americanos

Por Carla Oliveira

Neste 47º Festival de Cinema de Gramado, participaram da competitiva de melhores longas-metragens estrangeiros dois filmes dirigidos por mulheres com nacionalidade costarriquenha. Um deles é uma coprodução entre o México e a Costa Rica: Dos Fridas (2018), de Ishtar Yasin, cineasta nascida em Moscou, com plurinacionalidade. O outro é El despertar de las hormigas (2019), de Antonella Sudasassi Furnis, filme que concorreu na seção Forum da Berlinale. Ambos falam sobre corpos femininos.

 El despertar de las hormigas conta a história de Isabel (Daniela Valenciano), mãe de duas meninas (Isabella Moscoso e Avril Alpizar, agraciadas com prêmio especial do júri), que trabalha como costureira para ajudar no orçamento doméstico. É pressionada pelo marido (Leynar Gómez) a ter outro filho. O marido não é um bruto, é até terno, algumas vezes. São das pequenas e repetidas agressões sofridas pelas mulheres e da dificuldade que têm para tomarem decisões concernentes ao próprio corpo que Antonella Sudasassi quer falar. O filme é bastante naturalista na forma como retrata a influência das pressões familiares e do ambiente na vida da protagonista. Soa um tanto anacrônico em alguns momentos, como naqueles em que vemos Isabel tomando anticoncepcional às escondidas, no interior modesto da Costa Rica. Em meio à sua angústia, ela tem alucinações: com insetos, com cabelos, símbolos que também remetem à latino-americanidade (mãe e filhas usualmente não cortam seus cabelos, eles são conservados longos e bem cuidados). Há, porém, algo insólito no filme que não tem relação com os conteúdos das alucinações e sim com a forma como o marido reage à transformação e à tomada de rédeas de Isabel sobre o próprio destino. A ausência da violência explícita desconcerta parte da plateia. El despertar de las hormigas ganhou os Kikitos de melhor filme estrangeiro e prêmio da crítica de melhor filme de longa-metragem estrangeiro, além do reconhecimento acima citado às pequenas atrizes.

Dos Fridas é inspirado em fatos reais. Frida Kahlo (Ishtar Yasin) foi cuidada pela enfermeira costarriquenha Judith Ferreto (Maria de Medeiros) em seus anos finais no México. Tempos depois, Judith também será cuidada por uma enfermeira (Grettel Méndez) na Costa Rica. No mundo interior de Judith, uma cuidadora com alma artística, devaneios, delírios e realidade passam a se entrelaçar de forma cada vez mais intrincada. O filme fala sobre o tempo, o duplo, a morte. Máscaras, caveiras, bonecos, altares típicos do culto mexicano à morte são reincidentes. A mente e o corpo de Judith vão se tornando cada vez mais frágeis. Lesões semelhantes às de Frida são engendradas. Ela se maquia, se veste como sua antiga paciente, a quem tanto admirou. Em muitas cenas, Judith é filmada por Ishtar Yasin em composições semelhantes às dos autorretratos da pintora mexicana, que pintava seu corpo em sofrimento. O quadro “As duas Fridas” (1939) é um autorretrato duplo: as duas imagens têm os corações expostos. Dos Fridas é um filme formal, complexo, próximo à erudição, que aborda as dores da existência. É labiríntico, com espelhos, retratos, duplos. É tão latino-americano quanto El despertar de las hormigas, embora de vertente diversa. Primordialmente, Antonella filma o corpo feminino inserido em seu ambiente social; Ishtar, imerso em suas questões existenciais. Ela, que também assina o roteiro e a produção de Dos Fridas, recebeu menção honrosa por sua atuação.