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Publicado por em jun 6, 2016 em Artigos |

XII FANTASPOA: Cinema B, diversão e contestação – por André Kleinert

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O que torna o FANTASPOA uma experiência singular no cenário dos festivais nacionais não é somente o fato de que exibe filmes no gênero fantástico. Até porque produções de tal gênero se encontram com razoável abundância nas salas de cinemas de shoppings. É só citar como exemplos as adaptações para as telas de HQs de super-heróis, os derivados de O senhor dos anéis, as franquias de Crepúsculo e Jogos vorazes (e seus diversos imitadores), os inesgotáveis Star Wars e Star Trek, as infindáveis sequências de Atividade Paranormal e outras séries de terror. O que diferencia o FANTASPOA é que a grande maioria das produções que apresenta em suas seleções faz parte daquilo que se convencionou chamar de Cinema B. É claro que o conceito atual dessa linhagem de produções não é aquele mesmo que se aplicava nos 40 e 50, em que os filmes B eram aqueles produzidos pelos grandes estúdios e que não recebiam os mesmos recursos que uma obra considerada como prioridade pelos principais executivos e produtores. Longe dos holofotes e das restrições criativas impostas pelos grandes produtores, tais filmes apresentavam uma margem considerável para inovações e ousadias em termos de linguagem e temática. Martin Scorsese, por exemplo, comenta no livro/documentário Uma viagem pessoal pelo cinema americano que alguns dos principais diretores de filmes B de Hollywood dos anos 40 e 50 eram conhecidos como “cineastas contrabandistas” pelo fato de trazerem sutilmente para as suas obras assuntos e estéticas que fugiam dos padrões vigentes da época.

Atualmente, a definição de Cinema B é um pouco mais ampla, pois ainda abarca produções independentes, tanto dos Estados Unidos como do resto mundo. Pode se referir aos trabalhos de diretores que se encontram em ascensão, dispostos a entrar num circuito de produção e exibição mais amplo das grandes corporações cinematográficas, e também aos filmes de cineastas que fazem questão de permanecer numa condição mais alternativa ou mesmo underground. E se nas obras do gênero fantástico acima aludidas dentro do esquema de realização dos grandes estúdios há a necessidade de adequação a certos preceitos narrativos visando uma maior acessibilidade para as grandes plateias, naquelas que estão fora desse circuito tais limitações se mostram mais rarefeitas, daí a maior possibilidade de se aparecem obras de abordagens mais radicais e desafiadoras. Dentro dessa linha de pensamento, o FANTASPOA envereda por critérios de curadoria que tanto busca trazer para a sua seleção obras recentes inéditas no Brasil e que dificilmente encontrariam espaço nas salas de multiplex do país quanto resgatar filmes e diretores que se destacaram na história das produções B no gênero fantástico. Os mesmos critérios de programação foram mantidos nessa edição de 2016 do FANTASPOA que ocorreu no período de 13 a 29 de maio. Como homenageados do festival estavam lá os diretores Guilherme de Almeida Prado e Brian Trenchard-Smith, o ator espanhol Antonio Mayans e o músico italiano Vince Tempera, nomes bastante vinculados ao universo do Cinema B contemporâneo.

Clarisse ou alguma coisa sobre nós dois, de Petrus Cariry

Clarisse ou alguma coisa sobre nós dois, de Petrus Cariry

 

Se por um lado a edição desse ano consolidou ainda mais a particular personalidade do FANTASPOA como evento cultural, por outro é interessante notar como boa parte dos filmes que estiveram presentes em sua programação pareceu interagir de maneira contundente com o conturbado atual cenário político e social tanto nacional quanto internacional. Em meio a banhos de sangue e fantasias alucinadas, podia-se perceber no subtexto de alguns filmes um caráter de reflexão crítica sobre o mundo contemporâneo. No alemão O pesadelo (2015), em meio a uma trama envolvendo aberrações e uma edição que evoca o ritmo de um techno hardcore, há um olhar perturbador sobre hedonismo juvenil e alienação familiar. Já o israelense Freak out (2015) e o iraniano Sob a sombra (2016), de estruturas narrativas vinculadas a convenções tipicamente ocidentais, revelam de forma sutil os mecanismos de sociedades baseadas em repressão religiosa e no mal estar existencial permanente provocado por conflitos étnicos seculares. No também israelense Tikkun, rigorosas e hipócritas ortodoxias religiosas são dissecadas com cruel ironia. O turco Baskin (2015) promove um memorável e sangrento massacre de agentes da lei como meio de expiação de uma cultura obscurantista e opressora. O brasileiro O diabo mora ao lado traz para dentro do horror gore referências à escravatura no Brasil e suas consequências. A condição da mulher dentro do contexto de sociedades marcadas pelo sexismo é tema premente nos nacionais Clarisse ou alguma coisa sobre nós (2015) e Mar inquieto (2015) e nos norte-americanos Deusa do amor (2015) e Patchwork (2015). Sociedades de um futuro distópico, não muito diferente do presente, marcadas por preconceitos de classes e exclusões sociais são retratadas em Index zero (2014) e Apagados (2015).A falta de perspectivas que joga os indivíduos num vórtice de brutalidade e desencanto é exposta de maneira contundente em Meu pai, morra (2016) e no delirante Antibirth (2016). O homenageado Brian Trenchard-Smith demonstrou nas duas obras que foram exibidas no FANTASPOA, A caçada do futuro (1982) e Drive-in da morte (1986), ficções científicas sardônicas e violentas, realidades marcadas por estratificação social, repressão estatal a liberdades individuais e perseguição a imigrantes, com o próprio cineasta australiano, nos debates que se seguiram às sessões, mostrando-se surpreso com o caráter visionário de tais produções.

o diabomora aqui

O Diabo Mora Aqui, de Rodrigo Gasparini e Dante Vescio

 

É evidente que uma parcela significativa do que foi exibido no FANTASPOA tem uma condição de pura diversão escapista ou de experiências estéticas, o que também faz parte do espírito do festival. Ainda assim, o perfil contestador dos filmes citados no parágrafo anterior dão ao FANTASPOA também um caráter contracultural. Nesse sentido, a coerência da curadoria não se concentrou apenas na seleção dos filmes, mas também se estendeu para outros eventos da programação. A exposição do artista plástico Leo Dias, baseada em caveiras e figuras monstruosas, representa um desafio sem cerimônias em relação aos padrões de bom gosto de uma sociedade asséptica e cinicamente dita cristã. Na festa Fantaspoa toda la noche, o videomaker Danny Perez, diretor do citado Antibirth, fez uma memorável performance combinando projeções estilo “Jackass do inferno” com uma discotecagem/mixagem fundindo psicodelia, eletrônica e industrial, tendo como resultado uma experiência audiovisual chapante. Já o curso Aspectos históricos do horror cinematográfico moderno e contemporâneo, ministrado pelo professor Hernani Heffner, curador e conservador-chefe da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, foi uma viagem fascinante sobre as raízes e a formatação do cinema de horror, buscando as referências históricas, antropológicas, filosóficas e psicanalíticas que compõem o imaginário do gênero, além de expor uma visão original e nada superficial sobre a evolução histórica do horror no cinema brasileiro.

Todas essas particularidades do FANTASPOA aqui expostas, junto com a qualidade dos filmes que compõem a programação do festival, ajudam a explicar o expressivo público que compareceu nas sessões dessa edição de 2016, com direito, inclusive, a várias lotadas, fenômeno esse que já havia ocorrido em anos anteriores. E também são tais características que contribuem com a sua perenidade como evento cultural, no sentido de conseguir sempre inovar mantendo sua forte identidade conceitual, fazendo com que represente uma das alternativas mais peculiares dentro da programação cinematográfica não só de Porto Alegre como no próprio panorama nacional.