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Publicado por em jan 23, 2018 em Artigos, Destaque |

Ver, rever e repensar

Por Leonardo Bomfim, curador da mostra Cinema da América do Sul, realizada na Cinemateca Capitólio, de 7 a 20 de dezembro de 2017, especial para o site da Accirs.

Existe algum monstro hoje que parece nos obrigar a dar o veredito final sobre quaisquer e todas as coisas. Como diz uma amiga, a impressão é de alguém está com uma arma apontada para a nossa cabeça na frente do computador. Com o cinema, naturalmente, não é diferente. Se fosse paixão, a beleza das certezas permaneceria intacta, mas a arrogância parece tomar conta de um novo tipo de dandismo, um dandismo essencialmente seguro: asséptico. Esse tipo de postura sempre existiu, mas hoje parece ainda mais afetada e vazia, das resenhas sarcásticas, as notas e estrelinhas imediatas, os comentários definitivos. No instante em que o filme acaba, muitas vezes visto em condições nada apropriadas, tudo já está evidente: e morto.

Fica a pergunta: o quanto essa postura pode ser não apenas injusta com uma obra de arte, mas com a nossa própria sensibilidade? Em nome de uma suposta opinião firme, de uma personalidade cinéfila acima de qualquer suspeita, irretocável e irredutível, subjetividades se transformam em blocos de cimento.

Porque se existe algo forte na arte dos filmes (em qualquer arte, é certo), é que ela é capaz de ensinar o espectador a ver, a repensar o mundo e suas criações. Dois exemplos pessoais: detestei Crepúsculo dos  deuses na primeira vez, porque vivia uma guerra particular contra a palavra. Enfeitiçado pela imagem, acreditava que um filme tornava-se pobre a partir do momento em que o texto ganha protagonismo. Um filme inteiramente narrado, portanto, era o meu maior inimigo. Tive a sorte de encontrar o cinema de Manoel de Oliveira, anos depois, que me ensinou, entre tantas coisas lindas, que palavra não é literatura – antes de qualquer coisa, é som, um elemento mais cinemático, ou seja, mais relacionado ao movimento, do que a própria imagem. Uma imagem pode ser contemplada em repouso; a palavra falada, não. O cinema cresceu pra mim e quando revi o filme de Billy Wilder, já consciente de que palavra jamais vira imagem, consegui ver a obra-prima que ele, de fato, é.

O mesmo aconteceu com Mizoguchi. Durante muito tempo, tive o cineasta japonês como um “gênio que não era pra mim”. Não conseguia ver aquilo que todos viam. Foi através de uma revisão dos primeiros anos do cinema sonoro, especialmente a partir da descoberta dos filmes brutos e poéticos de Jean Renoir (Boudu salvo das águas nas alturas!), que consegui encontrar a beleza absoluta dos filmes de Mizoguchi. Não acreditei, ao rever As irmãs de Gion, hoje um dos meus filmes de cabeceira, que não tinha conseguido enxergar praticamente nada além da tragédia feminina que o filme expõe com muita delicadeza. Para muito além disso, é uma obra radical naquilo que o cinema tem de mais profundo: o olhar. Um filme que consegue ser contemporâneo das obras-primas de Louis Lumière, em 1895, e das obras-primas de Hou Hsiao-Hsien, em 1995. Ou seja: uma obra eternamente contemporânea e, por isso mesmo, difícil de ser mapeada dentro da sempre ingrata e redutora História do Cinema. E todos os filmes dos anos 1930 de Mizoguchi são assim…

Rever Zama

No Festival do Rio de 2017, uma das sessões mais aguardadas era a de Zama, o novo filme de Lucrecia Martel após quase dez anos de suspense. Sessão de gala no Cine Odeon abarrotado, com a presença da diretora e de boa parte da equipe (uma enorme co-produção brasileira), numa noite agradável de domingo. Parecia ser a ocasião mais apropriada para que uma nova obra-prima fosse desvelada: não foi.

Daniel Gimenez Cacho é Zama

Daniel Giménez Cacho é Zama

O cansaço das maratonas e dos deslocamentos de festivais acabou me derrubando. No fim da sessão, não sabia o que era sono ou elipse na obra de Martel. Saí com um gosto amargo, distante do arrebatamento esperado. Não consegui embarcar na agonia do protagonista, o Diego de Zama, um oficial da Coroa Espanhola que deseja partir para Buenos Aires, nem compreender os deslocamentos narrativos. Acima de tudo, me pareceu um filme sem muita vida, um tanto desinteressado. E problemático num sentido político, na representação dos escravos e dos índios. Nas minhas anotações, saiu como a grande decepção do Festival.

Pensei várias vezes se o filme realmente seria o mais apropriado para a abertura da mostra Cinema da América do Sul, na Cinemateca Capitólio. Talvez impulsionado pela defesa apaixonada de praticamente toda a (boa) crítica argentina, que viu no filme uma obra-prima absoluta e injustiçada pelo sistema dos festivais internacionais, mantive o interesse aceso. Felizmente a experiência ruim no Rio não apagou uma sensação de que poderia existir outro filme ali. Ficou um estranhamento adormecido mas instigante. Talvez por causa disso, os meses passaram e alguma coisa dizia que o filme tinha algo, que aquela noite cansada no festival não deu conta de um mínimo de sua complexidade. Mantive, então, a obra para abertura da mostra. E mais: fui atrás do romance de Antonio Di Benedetto.

Já durante a leitura, o filme de Lucrecia Martel cresceu. Comecei a compreender que existia um trabalho de adaptação muito sofisticado. A aproximação de fatos que acontecem com enorme distância na narrativa literária dá ao filme uma asfixia que o romance não tem. E as “traições” são essencialmente políticas (mudei completamente a opinião sobre a representação dos personagens negros e indígenas, por exemplo). E ainda aquilo que o cinema nascido de uma literatura em primeira pessoa tem de melhor: o desafio de transformar o “eu” num mundo. Não deu outra: quando fui revê-lo na sessão da Capitólio, o filme bateu, como uma viagem de ácido atrasada que acontece na melhor hora possível.

Ainda não consigo verbalizar exatamente as exclamações: como, por exemplo, achar que a grande cena de ação do ano é o momento em que o bando a serviço da coroa espanhola é emboscado pelos índios – alguém já filmou uma cena daquele jeito na história do cinema? Mas consegui ver, dessa vez, o desencanto transformado em arte cinematográfica de uma diretora que saiu de uma adaptação frustrada de O Eternauta e, numa viagem de barco ao Paraguai, encontrou um companheiro de peso para poder compartilhar o fracasso e transformá-lo em cinema: o romance do Antonio Di Benedetto, um contemporâneo existencialista da ficção-científica maravilhosa do Héctor Germán Oesterheld. Martel trocou o grande herói argentino, aquele que resiste à invasão alienígena nos anos 1950, por um homem medíocre, um burocrata a serviço do poder (mas completamente irrelevante para o poder, que retrato latino-americano!) que passa o tempo inteiro esperando algo que não chega. Cultiva algumas obsessões, uma mulher espanhola sedutora, um bandido perigoso e outras presenças fantasmagóricas, mas parece determinado, desde o início, a contemplar o fracasso: nada heróico.

Por enquanto, antes de uma nova revisão, gosto de pensar o filme como um exemplar magnífico dentro desse ciclo contemporâneo de retratos do período colonial, uma obsessão atual do nosso continente (mas não só dele). Com devidas diferenças e particularidades, filmes como Jauja, do argentino Lisandro Alonso, Rey, do chileno Niles Attalah, O abraço da serpente, do colombiano Ciro Guerra, Z – A cidade perdida, de James Gray, e, forçando um pouco (já numa projeção de futuro colonialista de quem foi colonizado), até mesmo o Gabriel e a montanha, do brasileiro Fellipe Barbosa, retratam esse personagem semelhante: um estrangeiro em busca de uma experiência limite em uma terra distante: a busca por um El Dorado particular – do cósmico (a experiência religiosa, de autodescoberta) ao mesquinho (a busca pelo ouro). Todos, de alguma forma, ao mesmo tempo se perdem e encontram o zênite.

Perto desses filmes, Zama é certamente o mais político e corajoso. É o único, por exemplo, em que o protagonista não é estrangeiro. Diego de Zama, por mais que não queira, é argentino. Sonha com o retorno a casa, com o poder espanhol, mas vive num limbo que ganhava forma ali: o nosso continente.

Enquanto todos os outros filmes retratam o encontro com um tipo de paraíso perdido, ou seja, um fim do mundo no sentido positivo da expressão, Lucrecia Martel busca nesse personagem um começo, uma fundação: o nascimento de uma nação (ou de um continente, essa América Espanhola, que também poderia ser portuguesa). Diego de Zama está muito mais próximo de nós. Essa é a impressão, mas o filme de Lucrecia Martel exige outros encontros. Um novo desejo: revê-lo.