Páginas
Seções

Publicado por em jul 11, 2017 em Artigos |

Delicadeza de uma relação difícil

Por Fatimarlei Lunardelli, especial para o site da Accirs

Não importa a geografia, não importam os valores que determinam uma cultura, são as experiências comuns à espécie que nos fazem iguais como seres humanos. Em torno de uma dessas experiências, o despertar da sexualidade, se desenvolve Mulher do pai (2016). Estreia na direção de longa-metragem da roteirista e produtora Cristiane Oliveira, o filme surpreende ao mudar a chave do discurso comum sobre o desejo sexual. O tema é abordado numa conjugação delicada entre o desenvolvimento da história e o tratamento visual e sonoro da linguagem.

Mulher do Pai 1

Num ambiente fronteiriço, numa cidade pequena em que pouco há para distrair os jovens, a vida da adolescente Nalu (Maria Galant) parece se precipitar quando morre a avó com a qual ela e o pai cego (Marat Descartes) viviam. A velha cuidava de tudo. A vulnerabilidade daquele homem deficiente e sem ânimo para a vida parece destinar a jovem a ocupar o papel de administradora da casa, a tornar-se mulher por força de circunstâncias alheias à sua vontade. É um papel que ela rejeita. O valor do filme está no tratamento desta recusa que se faz numa fronteira que também é emocional. Há uma grande distância afetiva entre pai e filha, relação que lhes é estranha por terem sido criados quase como irmãos.

A morte coincide com o despertar do desejo. Em Nalu é a natural explosão hormonal de uma idade de descobertas catalisadas por um rapaz (Diego Trinidad) do outro lado da fronteira que circula pela cidade e cujo corpo ela apalpa em encontros às escondidas, distante de olhares curiosos. Com muita sutileza o filme mostra como o despertar sexual de Nalu repercute no pai num jogo de espelhamento. Nele, a audição compensa a falta da visão e dá acesso a uma sexualidade perdida na tragédia pessoal da cegueira. Na garota é justamente a visão do corpo do pai, numa das cenas mais bonitas do filme, que permite a emergência de um vínculo afetivo até então inexistente entre eles.

No entrecruzamento destes estados emocionais alterados outro caminho se apresenta, pelo toque e pela arte, através da professora de arte interpretada pela uruguaia Verónica Perrota, personagem central que detona os novos acontecimentos. Além de representar para Nalu uma espécie de ‘mãe/madrastra’, capaz de aconselhar e orientar, ela entra no jogo de desejo entre pai e filha como solução para o impasse psicológico e moral. É pela arte que se expressam os sentimentos difíceis de serem colocados em palavras e possibilidades surgem.

Mulher do pai é um filme de silêncio. A música emerge de dentro das cenas por meio de aparelhos ligados no carro, no celular – uma trilha que vai compondo também o ambiente no qual se movem esses personagens que parecem não ter saída. Nosso olhar sobre os acontecimentos é de contemplação. O filme tem a modernidade da desdramatização comum a um cinema contemporâneo contrário ao papel tradicional da câmera, aquele no qual também faz parte da narrativa. Os planos longos e fixos – excelente trabalho de fotografia de Heloisa Passos – permitem que se perceba a sutileza dos sentimentos dos personagens. Filmado na divisa entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai, conjugando atores e técnicos dos dois lados da fronteira, traz uma abordagem do comportamento humano que é existencial e universal.