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Publicado por em set 13, 2017 em Artigos |

O respeito ao tempo dos personagens

Por Cecilia Barroso, integrante do Júri da Crítica no 45º Festival de Cinema de Gramado, especial para o site da Accirs

Em sua 45ª edição, o Festival de Cinema de Gramado destacou-se por uma seleção diversificada, com histórias e protagonismos variados. Mesmo com um certo desequilíbrio entre as mostras, estando as competitivas nacionais de longas e curtas-metragens muito mais apuradas do que a competitiva de longas estrangeiros, o saldo do evento foi positivo. Entre as produções que se destacaram, há pontos que se assemelham, como a construção apurada dos personagens e o uso do tempo da narrativa a favor deste desenvolvimento.

Iniciando pelos curtas-metragens, o elemento está presente no documentário Quebra-cabeça de Sara, dirigido por Allan Ribeiro, que tem como protagonista Sara Neves. A diarista vai se revelando ao narrar a história de seu próprio preconceito. Ribeiro permite que aquele espaço-tempo seja definido pela própria documentada, que se torna a responsável pelo resultado final.

O quebra-cabeça de Sara, de Allan Ribeiro

O quebra-cabeça de Sara, de Allan Ribeiro

O curta documental Gis tem uma dinâmica diferente, mas também usa o seu tempo narrativo para construir a persona de Gisberta Salce, brasileira torturada e assassinada em Portugal por ser transexual. Com depoimentos, matérias jornalísticas, a narração dos eventos que culminaram na morte e cartas da própria Gis, vão sendo determinados os contornos da personagem geral até que ela – já conhecida – é, finalmente, exposta na tela.

No curta animado Caminho dos gigantes, o foco transcende a personagem, mas o tempo da narrativa é fundamental para a construção da protagonista, uma jovem indígena que aprende em um paralelo entre a música e a natureza sobre o ciclo da vida e a morte.

O tempo a serviço dos personagens também esteve presente na mostra de longas-metragens nacionais, mesmo não sendo a característica mais marcante do longa mais premiado da edição, Como nossos pais. No filme de Laís Bodanzky, há toda uma preocupação na constituição das personagens e dos conflitos, mas, em sua estrutura tradicional, tudo segue um ritmo pré-determinado por ações pontuais, não dando a elasticidade temporal para o desenvolvimento mais natural do personagem, como se vê em outros títulos selecionados.

É o caso do longa-metragem As duas Irenes que, mesmo tendo uma história bem delimitada por eventos, flui de maneira a deixar suas duas protagonistas, aquelas que dão nome ao título, crescerem junto, ou melhor, impulsionarem a narrativa. Mesmo havendo uma verdade que alterará a vida de ambas, é o tempo daquelas duas meninas, em amadurecimento, encontro e reconhecimento, quem conduz a trama.

O mesmo se percebe no longa Pela janela, mas aqui há uma identificação ainda maior dessa influência da personagem na cadência do filme. Com uma interpretação precisa de Magali Biff, a autodescoberta de Rosalice e seu novo desabrochar para a vida não só conduzem, como são a história que se quer contar. A relação, portanto, mesmo vinculada ao roteiro, à técnica e à atuação, vê no tempo sua principal chave, pois é só ele, ao final das contas, que permite que essa história seja contada.

A relação também pode determinar um evento específico, como é o caso do luto no desenvolvimento de duas das histórias que chegaram diretamente da Argentina. Presente na competitiva nacional por ser uma coprodução platino-brasileira, em Vergel, mesmo que o filme se perca um pouco em si mesmo, há essa relação temporal na determinação de momento daquela mulher que tenta a liberação do corpo de seu marido.

O mesmo pode-se dizer de Pinamar, presente na competitiva internacional de longas, onde além do luto há uma gama de outras coisas e outras sensações circundando os dois irmãos que tentam resolver pendências ligadas à herança e precisam, ao mesmo tempo, se descobrir e estabelecer o seu lugar no mundo.

Para terminar, vale citar a coprodução peruana colombiana A última tarde, que utiliza o tempo para construir seus protagonistas de maneira reversa, fazendo com que a cada nova situação uma nova camada de ambos se revele, até que se chegue no conhecer completo de suas personalidades, completamente diferentes daquelas que são apresentadas a priori.

Ao analisar cada um desses filmes, o que se percebe é que a escolha narrativa dá aos personagens um papel de muito mais relevância na construção da história contada, tornando o que se vê mais relevante, natural e aprazível. Obviamente que as atuações são indispensáveis para que tudo funcione, assim como uma intimidade de todos os envolvidos com o roteiro e a consciência de que são aqueles personagens que contarão a história, não só a viverão.

É preciso que haja, de certo modo, um desprendimento por parte de quem realiza o filme e é gratificante ver que houve, entre todos estes citados, que abrilhantaram a edição deste ano do Festival de Gramado, essa percepção de que histórias contadas têm vida própria e podem ir muito além da ideia inicial de um filme, daquilo que se encontra, de certo modo engessado nas páginas de um roteiro.