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Publicado por em mar 23, 2014 em Artigos |

O cinema brasileiro no XXVII Festival Internacional Cinematográfico do Uruguai

xxvii_uruguaypor André Kleinert

Mesmo não sendo tão conhecido ou não tendo o mesmo glamour de festivais brasileiros como os de Gramado, São Paulo ou Rio de Janeiro, o Festival Internacional Cinematográfico do Uruguai, que ocorre anualmente em Montevidéu, é um prato cheio para os apreciadores de cinema. Na média, o evento costuma exibir mais de 100 longas metragens e centenas de curtas em um período de 15 dias. São produções que vem de diversos países, mas o que torna ainda mais atrativo o festival é fato de que a maioria esmagadora dessas obras dificilmente chega a ser exibida no circuito comercial brasileiro.

A edição do Festival em 2009, a de número 27, ocorreu de 04 a 18 de abril. Esse foi o sexto ano consecutivo em que compareci ao evento e posso dizer, sem exageros, que em termos de qualidade dos filmes essa edição foi a melhor edição das que já participei. A impressão que tenho é que a curadoria do Festival foi bem mais rigorosa que em anos anteriores, valorizando mais os méritos artísticos em si das produções do que aspectos como curiosidades ou exotismos. Claro que assisti a alguns filmes que não me agradaram tanto, mas ao mesmo tempo não teve nada que chegasse ao nível do constrangedor. E, melhor ainda, tive a oportunidade de conhecer quatro produções irrepreensíveis: o italiano Il Divo e os franceses Les Bureaux de Dieu, Home e Canções de Amor.

O Festival também sempre conta em suas edições com uma quantidade razoável de representantes brasileiros em sua seleção. O curioso nesse sentido, entretanto, é que uma parcela considerável dessas produções nacionais é de obras que não chegam a entrar no circuito comercial de cinemas de Porto Alegre ou nem mesmo em alguma mostra especial na capital gaúcha. Ou seja, o Festival acaba sendo uma oportunidade singular para assistir a tais filmes.

Na edição de 2009 do Festival isso não foi diferente, sendo que a presença do cinema brasileiro novamente foi considerável, com produções que ainda estão inéditas entre nós (e que talvez permaneçam assim…). Dessa forma, resolvi comentar sobre três relevantes filmes que lá assisti (KFZ – 1348, Pachamama e À Margem do Lixo) e que correm esse risco de cair no ostracismo de pouco serem vistos pelo público brasileiro. Além disso, os mesmos tem em comum o fato de serem documentários com enfoque para as questões sociais.

98KFZ – 1348, de Gabriel Mascaró e Marcelo Pedroso, tem uma premissa muito curiosa. O roteiro elege como “protagonista” um fusca, ano 1965, cuja placa é justamente o título do filme, partindo do seu primeiro dono, um engenheiro em ascensão e que se tornou prefeito municipal, passando por mais seis pessoas e chegando finalmente, em 2005, no seu derradeiro proprietário, um filosófico e meio delirante dono de ferro velho que acaba desmanchando o simpático personagem principal. É claro que à medida que o carro vai sendo repassado, o status social do seu eventual proprietário vai diminuindo. Com isso, os diretores fazem uma radiografia das diferenças entre as classes sociais brasileiras, mostrando os seus sonhos, desilusões, alegrias, crenças, tristezas, expectativas (ou falta das mesmas), visto que o grupo de pessoas que tiveram o fusca representa uma espécie de inventário da sociedade brasileira. Há a manicure e o barqueiro que já viveram dias melhores, o pastor que já foi viciado. A dinâmica da narrativa, inicialmente, obedece a um comportado padrão linear, utilizando uma evolução cronológica. Posteriormente, entretanto, Mascaro e Pedroso retomam os personagens e contrapõem os depoimentos dos mesmos, estabelecendo suas diferenças, ou evidenciando inesperadas semelhanças. Esse entrelaçamento das vidas dos indivíduos focados é o ponto de maior impacto de KFZ – 1348, ao conjugar uma gama considerável de personagens e histórias sem tornar a sua trama básica confusa, graças a um belo trabalho de edição.

99Já em Pachamama, de Erik Rocha, o foco narrativo é diverso, mas igualmente impactante. O diretor, filho de Glauber Rocha, faz uma viagem junto com a sua equipe pelas entranhas da América do Sul e acaba tendo a chance de retratar o recente e conturbado episódio na Bolívia envolvendo o conflito do Governo de Evo Morales contra as forças separatistas comandadas por empresários oligarcas da região de Santa Cruz. É claro que o documentário tem tendências panfletárias ao não esconder que simpatiza com a causa dos camponeses e de Morales. Ao mesmo tempo, entretanto, evidencia um país dividido entre as classes médias e altas que se sentem oprimidas pelo presidente e uma grande quantidade de camponeses e indígenas reivindicando mudanças nas estruturas econômicas e sociais. Rocha consegue extrair depoimentos extremamente reveladores e contundentes (aquele do empresário exaltando o “jeitinho brasileiro” é antológico). Essa visão mais aprofundada sobre o conflito demonstra a importância de um filme como Pachamama, até porque esses fatos não foram tão bem esmiuçados pela mídia brasileira.

À Margem do Lixo, de Evaldo Mocarzel, tem uma temática mais árida, e em alguns momentos cai realmente em seqüências enfadonhas, ao retratar o cotidiano dos catadores de papéis na cidade de São Paulo. Mocarzel faz o seu documentário aparentar quase um tom de vídeo institucional ao ressaltar a importância dos catadores diante da questão ecológica. Mas em outros momentos, entretanto, o cineasta consegue transcender essa tendência, principalmente ao fazer os seus protagonistas exporem suas histórias pessoais. Por mais que em tais situações o filme possa cair no sentimentalismo, é inegável a forte dimensão humana que a obra ganha. A obsessão em registrar os detalhes da rotina dos papeleiros também rende algumas cenas preciosas, como, por exemplo, quando um motorista, a bordo de um moderno e reluzente veículo, grita para um catador “vai trabalhar, vagabundo”. É claro que tal cena traz uma leitura óbvia ao retratar um instante de preconceito social, mas o registro imagético e sonoro dela é uma de uma lucidez cortante e impressionante.

No geral, por mais que essas três produções nacionais tenham as suas evidentes qualidades, é perfeitamente explicável porque elas provavelmente permaneçam distantes das nossas teles. Suas temáticas são pouco vendáveis, além do que as abordagens escolhidas por seus realizadores percorrem caminhos de poucas concessões formais. No final das contas, o destino desses documentários acabam sendo mesmo os festivais e algumas salas de caráter mais cultural. É claro que de forma nenhuma isso os invalida como espetáculos cinematográficos, cabendo às platéias mais aficcionadas ou curiosas correrem atrás desses filmes. De certa forma, descobrir esse tipo de obra é um dos pequenos prazeres dos cinéfilos.

Assim, que venha logo o XXVIII Festival Cinematográfico do Uruguai..