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Publicado por em mar 25, 2014 em Artigos |

O ainda não famoso Os Famosos e os Duendes da Morte

11Por William A. Silveira

Após a exibição de Os famosos e os duendes da morte, a única certeza a imperar na sala de cinema era a de que acabáramos de assistir a um filme que não se dispunha a estar ali apenas como mais um, engrossando os números da produção nacional. Sem conseguirmos absorve-lo por completo, a única asserção plausível era a de que ainda precisaríamos aguardar um tempo indeterminado até que fosse possível enquadrá-lo – ou seja, receber o devido reconhecimento – no cenário do cinema nacional.

Primeiro trabalho de fôlego de Esmir Filho, diretor conhecido e premiado por seus curtas-metragens (Ato II, Cena 5; Impar Par; Tapa na Pantera; Alguma coisa assim; Vibracall; Saliva), Os famosos carrega consigo duas importantes considerações. A primeira, de caráter pessoal, diz respeito aquilo que se costuma chamar de “cartão de visitas” do cineasta. Por mais que se possa argüir diferentemente, alegando que tal interesse não passa de excentricidade de críticos e cinéfilos, a verdade é que apresentar-se de forma contundente para o meio cinematográfico não significa puro preciosismo, mas revela peculiaridades – independente de serem desenvolvidas ou desviadas, posteriormente – do estilo e da temática do diretor, assim como abre caminhos para o interesse de produtoras e financiadores em geral.De qualquer forma, ninguém ousaria imaginar que por trás de obras iniciais como Um cão andaluz (Un Chien Andalou; Luis Buñuel, 1929), Cidadão Kane (Citizen Kane; Orson Welles, 1941), O Falcão Maltês (The Maltese Falcon; John Huston, 1941), Acossado (À bout de souffle; Jean-Luc Godard, 1959) ou Os Incompreendidos (Les quatre cents coup; François Truffaut, 1959) pudessem estar escondidos apenas golpes de sorte. A segunda consideração fala menos sobre o diretor e seu filme do que do meio no qual este se insere. As raras exceções na produção nacional que sugerem diálogo não diminuem o sensível – para não dizer preocupante – diagnóstico de solidão que invariavelmente flerta com a obra de Esmir. Não bastasse tal situação, vale lembrar como se configura o público brasileiro de cinema, ainda pouco convicto da qualidade dos títulos nacionais e muito tendencioso às escolhas que necessitam passar pelo aval das mídias de massa, principalmente, diga-se, a televisão. Dentro desse retrato cru e sintético da realidade, Os Famosos recebeu, então, as boas-vindas.

Apesar da transição do curta para o longa-metragem obrigatoriamente necessitar de uma ruptura formal mínima, Esmir não reconstrói sua trajetória. Para aqueles que o acompanham fica evidente a continuidade temática, das perplexidades e sutilezas que o mundo adolescente desperta no diretor, bem como a manutenção de duas de suas maiores virtudes: a composição apurada dos enquadramentos e a concepção peculiar da textura fotográfica.

Ambientado no interior do Rio Grande do Sul, em cidades de origem alemã, Os Famosos apresenta-se por completo logo na introdução: “naquela cidade, cada um sonhava em segredo. O menino sem nome conheceu a garota sem pernas. Ela não tinha pernas, mas mesmo assim não precisava de ninguém para ir embora.” A seqüência de frases em tela bem poderia transformar-se no constrangedor recurso utilizado por Nome Próprio (Murilo Salles, 2007), porém o efeito ganha aqui conteúdo e introjeta no espectador a linguagem metafórica e simbólica, tônica no restante do filme. Acompanhamos a partir de então, a vida desse garoto sem nome no embate, por assim dizer, entre dois mundos. De um lado, o virtual, ilimitado e irrestrito, no qual mantém a vida paralela na internet com amigos distantes e sentimentos à flor da pele publicados em blog; por outro, o pacato mundo real, de acontecimentos interioranos, rotina desinteressante e possibilidades reduzidas. Desse confronto surge a essência da obra, misto de melancolia, angústia e distanciamento. Duas cenas ilustram com clareza a discrepância entre os pólos do ser e do querer. Na primeira, o garoto interpretado pelo estreante Henrique Larré acorda contrariado para ir à escola, porém não exatamente pelo compromisso que deve cumprir, mas pelo nítido desconforto que a tomada de consciência da realidade ao seu redor lhe desperta, sentimento próximo à decepção daquele que ao dormir não anseia despertar, e, sim, nascer novamente. Posteriormente, acompanhamos a realização de uma prova coberta por desenhos taciturnos, imagens vagas e letras de músicas, cujo contraste entre a obrigação imposta pela sociedade – representada pela norma dos estudos – e a vontade expressa por sua natureza se assinala de forma perfeita.

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Baseado-se no romance homônimo do gaúcho Ismael Caneppele – que também assina o roteiro – Esmir pode unir seu interesse pelos dilemas do mundo adolescente, pouco explorado no cinema brasileiro – vale lembrar que o filme é anterior a Antes que o mundo acabe (Ana Luiza Azevedo, 2009), Sonhos Roubados (Sandra Werneck, 2009) e As melhores coisas do mundo (Laís Bodanzky, 2010) – e concebê-lo como um trabalho que não fosse exclusivamente dedicado a certa faixa etária. O peculiar de Os famosos reside na forma como o projeto acabou delineado. Inclinando-se para um cinema intimista, plenamente sensorial e formalmente avançado, a história se desenvolve à margem da estrutura clássica e convencional do cinema, preferindo substituí-la pela narrativa espiralada, simbolicamente efervescente e construída pela justaposição de metáforas visuais. Sem ousar desnudar ou simplificar seu protagonista, o diretor prefere compartilhar a trama com o espectador de maneira que este seja absolutamente necessário para o sucesso ou o fracasso do filme. Atitude que, não equivocadamente, poderia tachá-lo como dotado de tanta coragem quanto – por que não? – presunção, ainda que esta não seja necessariamente pejorativa.

Elogiável também é a forma como se compõe a densa atmosfera fílmica. Os ares de tragédia humana se completam com pontuações existencialistas e ceticistas sem incorrer nos clichês de estilo. Para isso, explora ao máximo a relação de significado que o alargamento do ritmo narrativo pode proporcionar, recurso encontrado recentemente em Luz Silenciosa (Stellet Licht; Carlos Reygadas, 2007) e utilizado com maestria por cineastas como Andrei Tarkovsky e Krzysztof Kieslowski. Na direção de fotografia, assinada por Mauro Pinheiro Jr. (Cinema, Aspirinas e Urubus; Marcelo Gomes, 2005), o clima frio do sul do país contribui para acentuar as diversas e confusas sensações daqueles jovens capazes de dissipar a neblina de uma manhã gelada, mas não de superar o emaranhado sinestésico de seus interiores.

Arriscando-se no tênue caminho entre o conhecido e o incognoscível, Os Famosos nos remete a um cinema muito similar ao proporcionado por Elefante (Elephant, 2003) e Paranoid Park (Paranoid Park, 2007), ambos de Gus Van Sant. Desdobrando-se na experiência ambiciosa de rastrear e reproduzir aquilo que perpassa a condição humana, o filme de Esmir Filho nos surpreende pela ousadia e qualidade, assim como pela aprazível sensação de ser o sopro de novidade do qual necessitava o cinema nacional.