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Publicado por em fev 14, 2017 em Dossiês |

Dossiê :: Prêmio ACCIRS 2016

A Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul elegeu como os melhores filmes de 2016 o longa-metragem brasileiro Aquarius, do diretor Kleber Mendonça Filho e o longa estrangeiro Elle, coprodução entre França, Alemanha e Bélgica, dirigido pelo holandês Paul Verhoeven.

O Prêmio Luiz César Cozzatti – Destaque Gaúcho, destinado à valorização da produção audiovisual e a cultura do Rio Grande do Sul, é dedicado à Fundação Piratini, que controla a TVE e FM Cultura. O prêmio é a manifestação de contrariedade da ACCIRS ao Projeto de Lei (PL) 246, que foi aprovado e prevê a extinção da fundação dentro do plano de contenção financeira do Governo Sartori.

Publicamos texto especial da jornalista e crítica de cinema Jaqueline Chala, sócia-fundadora da ACCIRS, ligada à Rádio FM Cultura desde a sua origem aos dias atuais, que lembra a trajetória da emissora e das pessoas que fizeram e fazem a FM Cultura.

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O filme Aquarius, sem dúvida a produção brasileira que mais gerou debate e polêmica em 2016, já havia sido tema de dossiê do site da Accirs, ao qual o leitor poderá remeter-se aqui.

O filme Elle, do diretor Paul Verhoeven, outro título controverso, conquistou o prêmio de Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Atriz em Drama para Isabelle Huppert no Globo de Ouro, também indicada na categoria para o Oscar. Foi escolhido o melhor filme de 2016 por várias associações de críticos de cinema, incluindo de Los Angeles e Nova York, além de ter sido nominado para a Palma de Ouro no Festival de Cannes.

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Leia críticas relativas ao filme pelos associados da Accirs.

Elle, de Paul Verhoeven por André Kleinert, Blog Anti-Dicas de Cinema, em 23/11/2016

A equipe do fanzine Zinematógrafo debateu Elle na webrádio Mínima com as participações de Giordano Gio, Cristian Verardi, Leonardo Bomfim, Laura Cánepa, Leandro Caraça e Juliana Costa.

Isabelle Huppert brilha em “Elle”, filme controverso que estreia nesta quinta por Roger Lerina, Zero Hora, em 16/11/2016

Elle por Chico Izidro, blog Sala-Escura publicado no site do Correio do Povo, em 17/11/2016

 

Elle por Rodrigo de Oliveira publicado na sexta edição da Almanaque21: Oscar 2017 em 30/01/2017

Apenas Isabelle Huppert poderia protagonizar Elle, controverso longa-metragem do diretor holandês Paul Verhoeven. E isso não é uma mera figura de linguagem ou uma forma de elevar o trabalho da atriz francesa. Ninguém mais poderia estrelar o filme, pois nenhuma profissional da área que leu o roteiro quis embarcar nessa jornada angustiante junto ao cineasta de Robocop (1987) e Instinto Selvagem (1992). Não foi por falta de tentativas, inclusive. Esta produção marcaria o retorno de Verhoeven ao cinema de Hollywood, mais de 15 anos depois de O Homem sem Sombra (2000), com o papel principal tendo sido oferecido a grandes estrelas como Nicole Kidman, Sharon Stone, Diane Lane e Julianne Moore. Todas recusaram o convite. O diretor se viu obrigado a partir para a França, onde sua história teria chances de ser realizada. Huppert, uma das mais talentosas e versáteis atrizes em atividade, mostrou-se interessada na história e, finalmente, Verhoeven encontrava sua protagonista, realizando da forma como imaginava sua trama de suspense com cavalares doses de incorretismo e sexualidade.

Na trama, baseada no livro de Philippe Djian e com roteiro assinado por David Birke, conhecemos a empresária do ramo dos games Michèle Leblanc (Huppert) em uma situação potencialmente traumática. Ela foi atacada dentro de sua casa por um homem encapuçado que a violentou brutalmente. A reação daquela mulher, porém, não parece nada comum. Depois de tomar um banho, limpar a sujeira que o atacante deixou para trás e se recuperar do susto, ela resolve deixar a situação embaixo dos panos. Não chama a polícia, não conta para seus amigos. Para ela, aquilo morreria ali. Mas o estuprador é mais próximo do que ela pensava, enviando mensagens para o seu celular e mostrando que está em seu encalço. Isso faz com que ela encontre meios de se precaver contra uma nova investida, mas também desperta a curiosidade dela a respeito da identidade de seu algoz.

Outras preocupações surgem ao mesmo tempo em sua vida. O seu caso com Robert (Christian Berkel), marido de sua melhor amiga Anna (Anne Consigny), parece estar com os dias contados; a descoberta de um novo romance do seu ex-marido Richard (Charles Berling) deixa Michèle um tanto incomodada, assim como a falta de atitude de seu filho Vincent (Jonas Bloquet) para com a namorada Josie (Alice Isaaz). Se não bastasse isso, sua idosa mãe Irène (Judith Magre) está pensando em se casar com um rapaz muito mais jovem, enquanto seu pai apodrece na prisão por um crime brutal feito no passado. Para completar, o casal de vizinhos Rebecca (Virginia Efira) e Patrick (Laurent Lafitte) passam a ser mais presentes na vida de Michèle, com aquele homem surgindo como um novo e excitante caso em potencial.

A principal diferença de Elle para outros filmes com essa trama de gato e rato é que a vítima, geralmente retratada como indefesa frente aos acontecimentos, aqui é mostrada como alguém completamente segura de si, destemida. Chamá-la de vítima, aliás, é um erro. Em dado momento do longa-metragem, a situação se inverte completamente. Não sabemos mais quem está no controle da situação e quem é o controlado. Isabelle Huppert interpreta uma poderosa mulher, dissimulada, forte, irônica. Seu passado, ainda adolescente, foi mais traumático do que qualquer ataque que poderia lhe acontecer no presente. Sem entrar em maiores detalhes para não estragar surpresas, Michèle viveu um período de sua vida cercada pelos olhares de todos. Conseguiu sobreviver e se fortalecer com tudo aquilo. No processo, tornou-se fria, prática, pontiaguda. Sua relação com os que a rodeiam mostra bem isso. Huppert é uma atriz inteligente e não martela as intenções de sua personagem. De forma sutil, com olhares, risos de canto de boca e senso de humor peculiar, a talentosa francesa faz com que nunca saibamos direito onde estamos pisando ao acompanhá-la. Ela é a heroína da história, mas é detestável em dados momentos. Ela foi vítima de um crime hediondo, mas não parece ligar muito para isso. Uma verdadeira esfinge, Michèle é um dos personagens mais interessantes que surgiram nos últimos tempos no cinema mundial.

A força da personagem quase esconde pontos problemáticos do longa, como a forma pouco sensível que trata a questão do estupro. Em uma época em que tanto se fala a respeito da violência contra a mulher e como é importante as denúncias contra agressores, Elle vai na contramão. Embora não trate sua protagonista como vítima, a relação sadomasoquista que segue quase perdoa o estuprador por seus atos, algo que é perigosamente irresponsável. Não à toa controverso, o roteiro do longa-metragem de Paul Verhoeven suscita discussões e mesmo tendo levado diversos prêmios – com destaque para sua passagem elogiada no Festival de Cannes e seus Globos de Ouro de Melhor Atriz e Filme Estrangeiro – falhou em ser lembrado pela Academia nesta última categoria. A temática não deve ter caído bem junto aos votantes que, ao menos, reconheceram o luminoso talento de Huppert lhe dando sua merecida indicação.

Elle e a gôndola por Ivonete Pinto especial para o site da Accirs em 14/02/2017

Muito se escreveu sobre Elle, por diversas razões. Este é mais um texto, que possivelmente não traga nada de novo, apenas cumpre o dever de registro na coluna do “não gostei”. Registro para que no futuro possamos olhar para trás e lembrar do título, lembrar porque, afinal, ele estava na lista de críticos como melhor filme do ano, sem falar no Oscar.

É fácil entender este reconhecimento da crítica: Elle tem uma arquitetura perfeita. O enredo é atual e traz personagens com atitudes polêmicas o suficiente para serem comentadas com passionalidade; os diálogos são precisos; os atores são mais do que competentes; a decupagem é soberba, desenhada na linha dos melhores filmes de suspense; a montagem é engenhosa e faz o espectador acompanhar as viradas do roteiro com atenção redobrada. Ele ainda inverte o percurso histórico do cinema, mostrando não um homem, mas uma mulher fria e calculista, provavelmente uma psicopata, com rara inteligência e interpretada por uma atriz que não necessita fazer expressão alguma, mover músculo facial algum para impressionar. Um homem moderno, o senhor Paul Verhoeven. Um feminista nato, diria-se.

Nem mesmo o constrangedor Showgirls pareceu arranhar a carreira deste senhor. Ele é competente no que faz. E o que faz melhor é marketing. Fazer marketing significa oferecer ao público um produto que ele pensa que precisa, como uma personagem que age na contramão do que qualquer personagem no âmbito do realismo agiria. Portanto, uma personagem complexa. Mas e daí? Daí que este cálculo na equação do marketing corrompe o mérito de Elle enquanto obra artística, formando uma barreira com letreiros que gritam: este não é um filme para ser levado a sério, é apenas um produto do senhor Verhoven, embrulhado com os melhores recursos da linguagem cinematográfica, mas que só quer causar. Receber o rótulo de polêmico é sua única meta.

Colocar hoje, em pleno vigor de uma consciência relativa à violência endêmica contra as mulheres, uma personagem que gosta da ideia de ser estuprada, é revolucionário, pensou o senhor holandês. E é revolucionário porque esta mulher não precisa articular pensamento algum, ela apenas dá corda aos seus desejos. Tão revolucionário quanto exibir, num instinto básico, mas apenas de relance pois ele é fino, uma mulher cruzar as pernas e mostrar que está sem calcinhas. Genial o senhor Verhoeven, pois consegue mexer com o mundo do cinema com ideias desta ordem. E quem quiser entender a extraordinária mente deste diretor, pode ir até o seu depoimento no documentário sobre montagem  The Cutting Edge: The Magic of Movie Editing (Wendy Apple, 2004). Ali ele explica didaticamente como planejou o efeito do cruzar de pernas de Sharon Stone. Uma verdadeira master class de marketing que funciona também para iluminar Elle e colocá-lo em seu devido lugar, a gôndola.