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Publicado por em abr 12, 2017 em Artigos |

As Convergências dos Júris em Lajeado

Por Jaqueline Chala

O Primeiro Festival de Cinema de Lajeado estreou demonstrando musculatura suficiente para seguir adiante. Com mais de 300 filmes inscritos e 55 selecionados, o evento reuniu apenas curtas-metragens e trouxe a público uma mostra bem variada e de diversas regiões do país. Mais impactante ainda foi verificar como o Festival já nasceu conectado temática e esteticamente com algumas das principais polêmicas e linguagens do momento. A maratona de assistir 55 curtas-metragens em três turnos durante apenas dois dias acabou sendo vencida de forma não tão extenuante devido a qualidade da seleção. Os debates ao final de cada turno facilitaram a escolha final, pelo menos no caso do júri da ACCIRS e o próprio consenso em torno de três das cinco principais premiações demonstram o potencial destes filmes. Claro que entre tantas produções muitas acabaram relegadas pela impossibilidade de estabelecer novas formas de premiação.

Boa Noite CharlesBoa Noite, Charles – ganhador do prêmio de Melhor Filme

Dividido entre documentário, ficção, experimental e animação, o Festival pareceu especialmente concentrado em temas como a violência contra a mulher, a virulência das opiniões manifestadas através das redes sociais, a banalização da violência através dos meios de comunicação, o abandono parental, as lutas coletivas e o enfraquecimento do estado frente à força reguladora de relações sociais das igrejas. Foi especialmente importante ver a coincidência dos dois júris, o oficial e o da crítica, na escolha do melhor curta-metragem de todo o festival. Boa Noite, Charles, dos irmãos cariocas Marcos e Eduardo Carvalho, perpassa praticamente todas as categorias em disputa em Lajeado e resulta numa trama divertida mas com um fundo de reflexão que põe em cheque toda a batalha que é fazer cinema no país. Moradores da favela do Vidigal, Marcos e Eduardo criaram uma stop-motion que mostra um personagem assombrado pela sua imaginação. Toda vez que apaga a luz, Charles, o boneco, vê espectros em seu quarto. Esta trama simples, porém, guarda a metáfora do próprio fazer cinematográfico e exercita a metalinguagem na medida em que o quarto de Charles é uma reprodução do quarto dos próprios irmãos que acabam entrando para dentro da trama a partir do momento em que surgem os primeiros problemas de produção. Charles, o boneco feito de forma precária (como de resto todo o filme), vai se despedaçando ao longo da história e os irmãos começam a entrar em desespero com as mudanças que são obrigados a fazer na trama a cada nova dificuldade. O final catártico, como um verdadeiro desabafo sobre o sangue e suor envolvidos na atividade cinematográfica nestas condições, retoma o pavor insolúvel do escuro e, ao mesmo tempo, remonta às velhas brincadeiras de infância nas quais todo um mundo se desenhava a partir da imaginação. Os realizadores de Boa Noite, Charles ainda brindaram o Festival com um significativo depoimento em vídeo agradecendo pelo prêmio, mas lembrando a violência nada imaginária que os cerca através do caso da menina de 13 anos baleada em sua escola no Rio de Janeiro.

Outra escolha coincidente dos dois júris foi em relação ao curta experimental escolhido: Autópsia, de Mariana Barreiros. Esta realização carioca utiliza imagens de várias fontes, como a internet, os programas de auditório e as notícias de celebridades para mostrar de que forma a violência e objetificação da mulher são naturalizadas a ponto de passarem despercebidas no cotidiano. Com uma ótima edição, Mariana constrói uma narrativa que dialoga com a exploração do corpo feminino através da dramatização. É como se tudo aquilo clamado por feministas finalmente fosse exposto de forma clara, objetiva e contundente.

Finalmente, o terceiro ponto de encontro entre os dois júris foi com a animação O Projeto de Meu Pai, de Rosária Moreira. Este é o terceiro curta-metragem da desenhista, também uma carioca, e tem caráter autobiográfico. Na história, Rosária conta como seu traço vai evoluindo ao longo do tempo, mas especialmente se refere a difícil questão de seu relacionamento com o pai, cuja imagem não evolui aos olhos da desenhista. Isso se dá por conta do abandono parental sofrido por ela que nos conta sua história a partir de uma perspectiva infantil. O traço infantil simboliza a relação não resolvida e, ao mesmo tempo, a própria figura do pai, sempre ausente e envolvido em transações que o impedem de assumir seu papel de provedor e porto seguro para a filha. A imaturidade da figura paterna, porém, é tratada com um humor irônico e nunca vitimizador. É assim que a desenhista descreve, por exemplo, o fato de sua pensão custar menos que o gasto do pai no provimento de uma égua de estimação.