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Publicado por em mar 23, 2014 em Artigos |

Antes que a juventude acabe

ANTESDepois de uma bem sucedida trajetória no curta-metragem, Ana Luiza Azevedo finalmente lança seu primeiro longa com Antes que o Mundo Acabe, sensível retrato sobre a adolescência que atesta sua maturidade como realizadora

Roger Lerina*

Filmar jovens é um desafio que o cinema brasileiro aceitou enfrentar de maneira sistemática apenas recentemente. Se os filmes voltados ao público infantil sempre fizeram parte do panorama de produção no país – com maior ou menor sucesso artístico e comercial -, os títulos tendo no horizonte as plateias pré-adolescentes e adolescentes (grosso modo, entre 10 e 18 anos) são ainda escassos em nossa cinematografia. Uma das razões disso é que o universo adolescente, diferentemente do infantil, parece ser menos apreensível aos adultos – que são quem fazem os filmes – do que o infantil. A despeito das mudanças culturais, sociais e morais que transcorrem entre a infância e a maturidade, há alguma coisa de essencial na forma lúdica com que as crianças se relacionam com o mundo que resiste ao tempo, passível de ser expressa pelos adultos com razoável credibilidade aos olhos infantis – ainda que muitas vezes essa comunicação possa ser meramente intuitiva ou pouco consciente.

O mesmo diálogo não existe entre adolescência e maturidade. Ainda que mais próximos em termos cronológicos, esses estágios da vida mantêm-se relativamente distanciados pela incompreensão e pela indefinição. Período de formação e, principalmente, de transformação – de criança para adulto -, portanto de crise, a adolescência é instável demais para o cinema. Se Os Trapalhões ou Xuxa podem requentar a mesma fórmula temática e narrativa em seus filmes por décadas, com apenas eventuais atualizações aqui e ali, o mesmo êxito em comunicar-se com seus espectadores parece não se repetir quanto aos títulos para adolescentes. Extremamente identificados com um universo de referências culturais volátil, em estado de permanente e veloz modificação, os jovens facilmente podem aparecer desfocados quando retratados pelo nosso cinema – cujo esquema de produção demanda pelo menos de três a quatro anos entre a concepção e a exibição de um filme. Não é apenas o rosto d desses protagonistas que muda: tudo o que o filme pretendia registrar – o comportamento, os valores, os gostos estéticos – pode ter se alterado sensivelmente durante o processo de produção da obra, impedindo mesmo que os espectadores se identifiquem com os jovens personagens na tela.

É, pois, ao menos corajosa a decisão da realizadora Ana Luiza Azevedo de estrear na direção de longas-metragens levando para o cinema a novela juvenil “Antes que o Mundo Acabe”, de Marcelo Carneiro da Cunha. A história de um garoto do interior gaúcho confrontado com as angústias da adolescência e com o súbito reaparecimento do pai que nunca conheceu levou seis troféus no 2º Festival Paulínia de Cinema, em 2009, além do Prêmio Itamaraty de melhor longa de ficção brasileiro da Mostra Internacional de São Paulo no ano passado. A diretora dos curtas “Três Minutos” (1999) e “Dona Cristina Perdeu a Memória” (2002) adaptou o texto ao lado dos roteiristas Paulo Halm, Jorge Furtado e Giba Assis Brasil.

“Antes que o Mundo Acabe” se passa na fictícia cidade gaúcha de Pedra Grande, onde um menino de 15 anos leva a vida entre brincadeiras com os colegas de colégio, namoro e brigas com a irmã caçula. Uma carta do pai desconhecido, um fotógrafo que viaja pelo planeta registrando imagens de povos remotos, chega ao mesmo tempo em que Daniel (Pedro Tergolina, ator de “Dona Cristina…”) é dispensado pela namorada Mim (a graciosa Bianca Menti), enfrenta um impasse com o melhor amigo Lucas (o estreante Eduardo Cardoso) e ainda se envolve em uma confusão na escola. Muitas dúvidas e emoções, que vão testar a maturidade do protagonista às portas da idade adulta.

Coincidentemente, “Antes que o Mundo Acabe” chegou aos cinemas em meio a uma nova onda de filmes brasileiros voltados para o público jovem, como “Os Famosos e os Duendes da Morte” (2009), de Esmir Filho, e “As Melhores Coisas do Mundo” (2010), de Laís Bodanzky. Tanto o longa do paulista Esmir quanto a produção de Ana Luiza foram filmados na mesma região gaúcha e falam de adolescentes que vivem no Interior e usam a internet para estabelecer suas relações – mas, como a própria diretora reconheceu, seu filme é solar, enquanto o de Esmir é mais noturno e melancólico. A meio caminho desses registros quase antagônicos de “Antes que o Mundo Acabe” e “Os Famosos…”, ainda há “Morro do Céu” (2009), de Gustavo Spolidoro, também rodado na mesma região próxima de Cotiporã. Acompanhando o cotidiano de um adolescente em uma pequena comunidade rural de descendentes de italianos, “Morro do Céu” usa material captado de forma documental para criar uma dramaturgia, organizada como um filme de ficção – desenhando um retrato acridoce de uma juventude que vive ao mesmo tempo o isolamento físico e a conexão com o mundo via rádio e internet.

Essa dualidade entre os sentimentos de alienação e pertencimento típica da adolescência encontra eco nesses filmes todos na particular localização geográfica onde esses personagens convivem e se movimentam. O roteiro de “Antes que o Mundo Acabe” subliha essa questão da distância fazendo algumas alterações com relação ao livro – fundamentalmente, deslocando a ação principal de Porto Alegre para o interior gaúcho, a fim de realçar a sensação de isolamento de Daniel e seus amigos.

Os acertos do roteiro de “Antes que o Mundo Acabe”, porém, vão além do deslocamento físico da ação e incluem alterações da trama, supressão de personagens e acréscimos de dilemas que na verdade apenas atualizam a história e enriquecem-na, sem desvirtuar no entanto o original do escritor Carneiro da Cunha. O próprio autor do livro, aliás, foi quem sugeriu uma mudança dramática fundamental de seu texto: no livro, Lucas é acusado injustamente de ter roubado um computador da escola; já no filme, o garoto de origem humilde realmente leva para casa o equipamento, o que provoca uma série de reações ambíguas de Lucas, Pedro e Mim e acrescenta complexidade a suas personalidades. Em seu esforço de aproximação realista do grupo que busca registrar, o filme acertadamente evita os maniqueísmos e não hesita em mostrar seus jovens personagens mentindo ou protagonizando atitudes moralmente questionáveis – é o caso por exemplo da forma como Mim manipula o interesse amoroso de Daniel e Lucas por ela.

Do ponto de vista de estrutura, o filme também propõe uma interessante novidade: o personagem da irmãzinha de Daniel, inexistente no livro, surge como um curioso observador da história, cuja narração sobreposta à ação funciona como comentário divertido e reflexivo dos episódios. No entanto, as falas irônicas de Maria Clara não visam esclarecer ou ressaltar elementos da história como se fosse uma bengala narrativa: suas observações agregam ao filme o ponto de vista de uma menina de menos de 10 anos ainda distante das experiências que observa seu irmão vivenciar – surgindo assim como um contraponto alternativo ao discurso dos adolescentes protagonistas da história e o dos adultos coadjuvantes (os pais e os professores).

A diretora Ana Luiza Azevedo conseguiu transpor para a tela com verdade e leveza o cotidiano de uma galera de cidadezinha – e muito graças à convivência surgida nas oficinas de representação entre os 15 atores mirins selecionados pela produção em escolas das cidades onde a produção foi rodada, em novembro de 2007: Taquara, Rolante e Santo Antônio da Patrulha, além de Porto Alegre. Se alguns desses jovens intérpretes ficam devendo em termos de atuação, principalmente nas cenas dramáticas, outros surpreendem, como a pequena Carolina Guedes, que encarna a mana de Daniel. Para além da abordagem do universo teen, o roteiro mostra com sensibilidade o relacionamento de Daniel com a mãe (Janaína Kremer), o padrasto (Murilo Grossi) e o pai – interpretado pelo ótimo Eduardo Moreira, ator do grupo mineiro de teatro Galpão, que se destacou também em “Moscou” (2009), documentário de Eduardo Coutinho.

“Antes que o Mundo Acabe” consegue extrair de seu elenco juvenil aquilo que o cineasta francês François Truffaut (1932 – 1984) perseguia capturar em filmes como “Os Incompeendidos” (1959) e “Na Idade da Inocência” (1976) – e que descreveu em textos como “Reflexões Sobre as Crianças e o Cinema”: “A adolescência traz consigo a descoberta da injustiça, o desejo de independência, o desmame afetivo, as primeiras curiosidades sexuais. É portanto a idade crítica por excelência, a idade dos primeiros conflitos entre a moral absoluta e a moral relativa dos adultos, entre a pureza do coração e a impureza da vida, é, enfim, do ponto de vista de qualquer artista, a idade mais interessante a ser iluminada”.

“Antes que o Mundo Acabe” prova que, como o personagem Daniel, Ana Luiza também amadureceu como realizadora. Já o cinema brasileiro parece disposto, mesmo que ainda acanhadamente, a arriscar-se mais na tentativa de fotografar a fugidia adolescência. Os eventuais fracassos de algumas dessas produções não devem, porém, desanimar aqueles que perseguirem a intuição de Truffaut: “Ao contrário dos atores profissionais, as crianças não têm truques, não tentam se colocar vantajosamente em relação à lente, não sabem se têm um perfil melhor que outro, não usam de astúcia com um sentimento. Tudo que uma criança faz na tela curiosamente parece estar fazendo pela primeira vez. Esse duplo sentido, esse equilíbrio entre o fato singular e seu valor de símbolo genérico, torna em particular preciosa a película que registra jovens fisionomias em transformação”.

*Jornalista e crítico de cinema do jornal Zero Hora, presidente da ACCIRS – Associação de Críticos de Cinema do RS

Publicado na revista Teorema nº 16, jul 2010, pp 63-67.