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Publicado por em mar 25, 2014 em Artigos |

Amantes inconstantes (Sobre o Exercício da Crítica Cinematográfica)

por Marcus Mello

09No início dos anos 80, não havia diretor mais incensado que o italiano Ettore Scola. Eu lembro bem, porque foi mais ou menos nessa mesma época que começou também minha conversão definitiva à cinefilia. Naquele tempo, Scola era um cineasta incontornável para qualquer cinéfilo que se prezasse. Com apenas 17 anos, eu próprio já havia assistido a Nós que Nos Amávamos Tanto (C´Eravamo Tanto Amati, 1974), Um Dia Muito Especial (Una Giornata Particolare, 1977) e Casanova e a Revolução (La Nuit de Varennes, 1982), três carros-chefe da filmografia de Scola. O melhor, porém, estava por vir. Em 1983, Scola estrearia O Baile (Le Bal), filme sem diálogos, no qual várias décadas de história da França eram contadas por meio dos encontros e desencontros de um grupo de personagens em um salão de baile. Não havia como discordar dos críticos: Scola era um gênio da sétima arte e O Baile, uma obra-prima indiscutível.

Corte rápido. Início de 2008. Em sua coluna de filmes na TV no jornal Folha de S. Paulo, o crítico Inácio Araújo destrói O Baile. Em apenas dois parágrafos, a ex-obra-prima de Scola agora foi reduzida a um esforço “inútil”, a “uma lição de maneirismo”, a um filme “esquecido”. Algumas semanas depois e eu, confesso, ainda não me recuperei desse golpe desferido pela pena de Inácio contra um dos “rosebuds” de minha adolescência cinéfila. Afinal, não é qualquer um que escreveu essas duras palavras. Trata-se de Inácio Araújo, meu crítico favorito, provavelmente o melhor profissional da área no Brasil. O que deveria fazer? Rever o filme – o que não faço há anos – e confirmar que Inácio estava enganado? Sim, esta parecia ser a coisa mais sensata a fazer. Mas então lembrei do último Scola que havia revisto. Foi quando precisei escrever um texto sobre Maria Antonieta (Marie Antoinette, 2006), de Sofia Coppola, e achei importante voltar a Casanova e a Revolução, a versão de Scola sobre a queda de Versalhes, a que eu assistira somente no momento de sua estréia, e de que gostava muito. Qual não foi o meu desapontamento ao perceber que o filme de Scola já não era capaz de me despertar o mesmo entusiasmo. Recordei também do último filme dele, Gente de Roma (Gente di Roma, 2003), ainda inédito no Brasil, uma reunião de esquetes sobre os habitantes da capital italiana que me pareceu indefensável. E então decidi, pelo menos desta vez, e em nome dos bons tempos, ignorar o texto de Inácio. Não quis rever O Baile. Preferi permanecer fiel a Scola e continuar recordando de seu filme como uma das obras-primas insubstituíveis da minha adolescência.

Este episódio veio à tona ao ser convidado a escrever este pequeno artigo sobre as mudanças em relação à recepção de certas obras cinematográficas ao longo dos anos. O que faz com que um filme – ou mesmo um cineasta – hipervalorizado pela crítica em determinado momento alguns anos depois seja menosprezado? Por que diretores como Peter Greenaway, Wim Wenders, Emir Kusturica ou o já citado Ettore Scola eram mais importantes na década de 80 do que parecem ser hoje? Foram eles que mudaram e passaram a fazer filmes piores ou foi a crítica que mudou? Onde foram parar aquelas produções cultuadíssimas das quais todo mundo falava há 20 anos? Alguém lembra de Liquid Sky, uma produção de ficção-científica de 1982, dirigida por Slava Tsukerman, cineasta russo radicado nos Estados Unidos? Este filme causou furor numa Mostra de Cinema de São Paulo. Era uma história sobre extraterrestres que aterrisavam sua nave na cobertura de uma modelo viciada em heroína, em Nova York. Todos os críticos e cinéfilos viram e falaram bem. Embora muitos articulistas que escreveram sobre filmes hoje esquecidos como Liquid Sky tenham desaparecido (onde andará Pepe Escobar, “o” jornalista moderninho da Folha de S. Paulo nos anos 80?), Slava Tsukerman continua na ativa. Nos anos 2000 dirigiu três longas, o último deles Perestroika (2007), com F. Murray Abraham. E o DVD americano de Liquid Sky está disponível no site de compras Amazon. O que não é suficiente para alterar o estado das coisas: hoje ninguém mais fala de Tsukerman e de seu outrora cultuado filme de ficção científica.

Ainda bem, talvez digam aqueles que tenham (re)visto o filme recentemente. Outros lamentarão o fato de que uma pequena jóia cinematográfica permaneça esquecida por tanto tempo. De todo modo, estes pequenos exemplos servem para ilustrar o quanto é movediça a história da recepção crítica no mundo do cinema.

As razões para que isso aconteça são as mais variadas. O tempo, que traz o benefício de um olhar distanciado, pode alterar sensivelmente a avaliação de um determinado filme ou autor, para o bem ou para o mal. Há títulos que claramente estão à frente de sua época e, portanto, serão mal compreendidos na ocasião de seu lançamento. Outros, passados alguns anos de sua estréia, irão se revelar obras datadas, incapazes de manter seu encanto para além de uma geração.

Não há novidade alguma nesta equação. Tal fato é algo absolutamente natural, e não se restringe ao universo do cinema. Qualquer espectador já passou ou irá passar por uma experiência de reavaliação. No entanto, há um grupo de espectadores que, por conta de sua quase sempre ingrata atividade profissional, está na ponta desse espinhoso iceberg: os críticos de cinema. Responsáveis diretos por consolidar a reputação de um filme, os críticos são sujeitos de hábitos muito peculiares. Obrigados, por força de ofício, a assistir tudo, e a emitir juízos imediatos sobre aquilo que acabaram de ver, convivem com a dor e o prazer do excesso, e ainda carregam nas costas a terrível responsabilidade de ajudar a formar opiniões alheias.

Sobre o tema, o pernambucano Kleber Mendonça Filho realizou um excelente documentário, Crítico (2007), no qual reúne dezenas de depoimentos de críticos e cineastas, colhidos ao longo de uma década. Na privilegiada posição que ocupa (além de cineasta, também é crítico), Mendonça Filho oferece uma irônica reflexão sobre os percalços da atividade crítica. Há uma imagem bastante significativa no documentário, que flagra a saída de uma sessão para a crítica no Festival de Cannes. As portas se abrem repentinamente e todos saem em disparada, pois precisam escrever seus textos ou correr para uma próxima sessão. Tal imagem é reforçada pelo depoimento de uma colaboradora do semanário Variety, que descreve a situação absurda de assistir a um filme e ter apenas meia hora para enviar a seu editor um texto com a sua avaliação sobre ele. Isso em um contexto em que são obrigados a assistir até cinco filmes por dia, muitas vezes lutando contra o sono e a fome. Se formos pensar no papel desempenhado por Cannes, onde costumam acontecer os lançamentos dos novos filmes de diretores de primeira linha do cinema mundial, e que a primeira – e certamente influente – avaliação desses filmes é feita por um grupo de profissionais quase sempre exaustos, famintos e apressados, não fica difícil entender por que alguns equívocos de recepção costumam acontecer.

Não podemos esquecer que críticos também são seres humanos, nascidos, por estranhas tramas do destino, com um singularíssimo traço de caráter: levam sua própria opinião em tão alta conta que não têm o menor pudor em publicá-la, sempre que a chance aparece. E a publicação contumaz de suas opiniões faz com que boa parte deles se transforme também em sujeitos vaidosos e de egos inflados. Por isso, ainda, são raros os críticos que se permitem mudar de opinião. Para não correr o risco, alguns desses profissionais se recusam mesmo a rever filmes. O caso mais célebre é o de Pauline Kael (1919-2001), a toda poderosa decana da crítica norte-americana. Em sua última longa entrevista, publicada em livro (Afterglow – A Last Conversation with Pauline Kael, da Capo Press, 2002), Kael reafirma o hábito de jamais assistir a um filme mais de uma vez. Mesmo quando se tratava de filmes que praticamente só ela defendeu, como Lolita (Lolita, 1962), de Stanley Kubrick, ou Pecados da Guerra (Casualties of War, 1989), de Brian De Palma, a hipótese da revisão era vista como mera perda de tempo por Kael.

Entre os poucos críticos brasileiros que tiveram coragem de rever publicamente suas posições, está o gaúcho Enéas de Souza, autor do livro Trajetórias do Cinema Moderno (1965). Como boa parte da crítica gaúcha nos anos 60, Enéas rejeitou a obra de Glauber Rocha, valorizando um cinema de viés mais clássico, como o de Walter Hugo Khouri. Em texto publicado em 1995, o crítico irá reconhecer seu erro de avaliação: “Já disse a alguns, mudei minha opinião sobre ele, eu que apreciava mais a Noite Vazia do que Deus e o Diabo. Quando vi em Paris dezenas de filmes iguais ao de Khouri e nenhum como os seus (de Glauber), compreendi o impacto da originalidade do delírio brasileiro”. Menos incomum é ver um grupo de críticos de uma nova geração se levantando contra críticos de uma geração anterior, defendendo filmes e autores cujo valor não tenha sido reconhecido anteriormente (ou o contrário). Essa atitude, com freqüência, surge quase como uma condição essencial de demarcação de território, necessária para legitimar a chegada ao mercado de uma outra geração de profissionais, que por sua vez irá contribuir para girar mais uma vez a roda do sistema das artes. Os críticos reunidos em torno da revista Cahiers du Cinéma, na França, a partir dos anos 50, são um bom exemplo disso.

Outro dado curioso são as diferenças de recepção verificadas devido a idiossincrasias cultivadas por críticos que vivem em contextos culturais distintos. Ao folhearmos as páginas da revista El Amante (uma das mais respeitadas publicações de cinema da América Latina), na vizinha Argentina, freqüentemente iremos encontrar elogios a certos filmes e diretores que um grupo de críticos com perfil semelhante no Brasil costuma execrar. Diferenças explicadas muitas vezes por condições locais de exibição e distribuição, que terminam sendo definidoras na formação do repertório cinematográfico de um crítico – repertório esse que sempre será o seu maior patrimônio – de modos variados.

Ainda assim, sigo me surpreendendo com essas mudanças repentinas de avaliação. Até porque elas parecem não ter limites e talvez estejam mesmo ligadas ao espírito do tempo. Apenas para seguirmos nos anos 80, naquela época, também lembro bem, não havia nada pior para a crítica que os filmes da série Rocky, o Lutador, com Sylvester Stallone. Em 2007, quando Stallone lançou seu Rocky Balboa, resenhas francamente positivas saíram em publicações que costumo respeitar (como a citada El Amante). Eu, por via das dúvidas, recorri à mesma estratégia usada em relação a O Baile. Para não arriscar, passei longe dos cinemas onde o filme estava sendo exibido. Vai que aconteça de eu gostar. Algumas certezas da juventude, esse nosso divino tesouro, eu ainda prefiro manter intactas.

Texto publicado originalmente na revista Reserva Cultural (SP), edição nº 3. Texto de crítico integrante da ACCIRS já publicado em outro veículo da imprensa e autorizado para publicação no site da associação.