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Publicado por em mar 24, 2014 em Artigos |

Revolução Tailandesa (sobre Apichatpong Weerasethakul)

por Daniel Feix

11O professor Armindo Trevisan, um dos nossos maiores especialistas em cultura oriental, é quem ensina: o primeiro passo para tentar entender a arte do Oriente é se despir despudoradamente das convicções e mesmo das experiências vivenciadas com a arte ocidental. Só uma re-sensibilização plena pode nos indicar o caminho para a fruição da produção japonesa, chinesa ou coreana – cânones do Ocidente seguem princípios estéticos tão distintos que, em vez de servirem de guia, não passam de ruídos a atrapalhar o entendimento do público. No caso do tailandês Apichatpong Weerasethakul, a lição vale em dobro: além de estar diante de um cineasta de uma escola completamente desconhecida, ao assistir a um de seus filmes o espectador está frente a uma obra rara, que, como poucas outras, aponta novas possibilidades para a linguagem do cinema.

Weerasethakul foi o astro do ciclo Ásia: A Nova Onda Oriental, composto também por filmes de Hou Hsiao-hsien e Jia Zhang-ke, entre outros, que esteve em cartaz em novembro na Sala P.F. Gastal da Usina do Gasômetro. Foi a mostra de cinema do ano em Porto Alegre – infelizmente incompreendida pelos cinéfilos da cidade, que compareceram em número ínfimo se comparado à envergadura e à raridade dos títulos selecionados, em sua maioria lamentavelmente ignorados por distribuidores do circuito tradicional. Segundo dados da organização, somente 73 felizardos estiveram nas quatro sessões de Mal dos Trópicos (2004) e Síndromes e um Século (2006). Dois títulos que, a rigor, são parte significativa de sua obra conhecida internacionalmente – além deles, Weerasethakul lançou apenas o elogiado drama romântico Eternamente Sua (2002) e outro par de longas ainda inéditos no Brasil, um documentário, Mysterious Object at Noun (2000), e The Adventures of Iron Pussy (2003), uma comédia menos pretensiosa co-dirigida pelo ator Michael Shaowanasai.

A ascensão mundial do diretor e roteirista está ligada ao Festival de Cannes. Eternamente Sua causou frisson na mostra paralela dedicada a jovens realizadores, de onde saiu, em 2002, como o melhor filme. Mal dos Trópicos, que dois anos depois disputou a Palma de Ouro, recebeu nova ovação, alcançando o grande prêmio do júri – e outros troféus, como o prestigiado prêmio da crítica na Mostra Internacional de São Paulo. Em 2006, Síndromes e um Século estreou em outro gigante do circuito de festivais, o de Veneza, sendo igualmente bem recebido, embora, desta vez, ficando sem premiações tão significativas. Apesar de serem esses dois últimos – não por acaso os filmes exibidos na Capital – os maiores responsáveis pelo reconhecimento do autor, é bem antes, talvez antes mesmo de o tailandês dirigir seus primeiros vídeos de curta-metragem, nos anos 1990, que estão as principais chaves para penetrar em seu universo enigmático e fascinante.

Natural de Bagkok, o cineasta de 38 anos cresceu em Khon Kaen, nordeste da Tailândia. Foi lá, contou em entrevistas, que aprendeu sobre lendas e histórias orais cuja origem remonta aos povoados mais remotos do país. Filho de médicos, cresceu, como também já descreveu à imprensa internacional, numa unidade residencial habitada por funcionários de um hospital, “vendo gente doente ou morrendo, mas sem formular conceitos filosóficos sobre a dor ou a morte – eram só pessoas que iam e vinham”. Segundo seus relatos, era um garoto tímido e, depois de crescido, muito “centrado”. Formou-se em arquitetura. E rumou para o Ocidente.

Os choques culturais a que havia sido submetido até então se inverteram. Se a adaptação de Bagkok a Khon Kaen fora da cidade grande para a menor, agora ele saía de uma localidade habitada por 120 mil pessoas às margens das florestas tailandesas para estudar cinema no Art Institut of Chicago. Se para virar arquiteto fora obrigado a trabalhar concisão e exatidão, ao chegar à grande escola norte-americana de arte o que se apresentava como desafio era um meio de expressão menos explorado e, por isso mesmo, visualmente mais confuso, difuso – o vídeo. Aos novos amigos que não sabiam como pronunciar seu nome, ele passou a repetir, não sem uma dose considerável de ironia: me chamem de Joe.

A interseção entre Khon Kaen e Chicago, entre mitos da selva e a faculdade de belas artes, entre arquitetura e videoarte, entre Apichatpong Weerasethakul e Joe – é daí que surgem Mal dos Trópicos e Síndromes e um Século. Não à toa, uma das coincidências dos filmes é que ambos são compostos por duas linhas narrativas paralelas.

Em Mal dos Trópicos, a vida é feliz e o amor é simples para dois camponeses, um deles um soldado, em suas descobertas juvenis. O retrato de suas vidas, dos encontros familiares, dos passeios de moto pelas estradas de chão batido, é discreto, sutil como é tradição das cinematografias orientais no tratamento de rotinas cotidianas. Porém, ao mesmo tempo em que um tigre selvagem começa a atacar na região, um dos jovens desaparece. E Weerasethakul muda radicalmente de tom para acompanhar o mergulho do outro nas matas à cata do amigo. A história passa a ser narrada em paralelo à aparição de letreiros que contam um mito local envolvendo um grande felino. Antes realista, o filme vira uma fábula – mas com os mesmos personagens “reais”, há pouco conhecidos em sua intimidade. A sensação de incômodo do espectador aumenta pelo trabalho de luz e som, este último penetrante, hipnótico, que o levam a se sentir dentro da selva. O encontro do protagonista com o animal se dá numa imagem desconcertante: imponente, o tigre está numa árvore observando o soldado, que está imóvel, no solo. A iluminação é tão difusa que leva a – como se fosse novidade a essas alturas – duvidar de que eles estão no mesmo plano. Há respeito mútuo. Mas um está no alto, o outro, no chão – o que diz algo sobre a relação entre o homem e a natureza à sua volta.

A provocação dos sentidos da platéia vai além em Síndromes e um Século. Aqui a narrativa também se divide em duas partes – mas espelhadas. Ambas se passam em hospitais, evocando lembranças pessoais do realizador. A primeira, numa clínica rural. A segunda, numa clínica moderna da metrópole. Diálogos e cenas inteiras se repetem, personagens vão e voltam, até que se estabeleça um jogo de memória que pega o espectador por aquilo que mais de um crítico já chamou de “expansão da sensibilidade” – mais que simples reencenações, o filme brinca com as possibilidades da memória, acfrescentando ou subtraindo elementos, na comparação com seqüências anteriores. E também com o conceito de “evolução” – no início, um dentista e um monge fazem piadas e conversam sobre seus talentos musicais; depois, num ambiente asséptico, de máscara, não trocam uma palavra. Mais, muito mais: explorando o extra-campo (o que está fora de quadro), a câmera de Weerasethakul passeia mostrando e escondendo elementos cênicos visuais ou sonoros como se desafiasse continuamente o espectador. Todos os espaços podem ser re-ocupados, parece dizer o cineasta-arquiteto, mas, quanto mais afastados de sua origem, de sua essência, mais estaremos em posição inferior – mais ou menos como se pôde ver no plano-síntese de Mal dos Trópicos.

Síndromes e um Século é um filme-ensaio, de narrativa toda fragmentada, ainda mais radical que o anterior, em que seqüências inteiras fazem sentido mais por seu aspecto sensorial do que por sua função dramática. Manipular o tempo narrativo não é algo novo, nem mesmo reinventá-lo substancialmente para explorar os sentidos do público. Fazer isso trazendo acumulada uma vivência como a de Weerasethakul, estabelecendo as pontes que ele estabelece entre a subjetividade oriental e a objetividade ocidental, no entanto, é algo que o cinema talvez ainda não tivesse experimentado.

Filmografia do diretor (longas-metragens):
Mysterious Object at Noon (2000)
Eternamente Sua (Blissfully Yours, 2002)
The Adventures of Iron Pussy (2003)
Mal dos Trópicos (Tropical Malady, 2004)
Síndromes e um Século (Syndromes and a Century, 2006)