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Publicado por em set 13, 2017 em Artigos |

Personagens femininas tomam conta do Festival de Gramado

Por Suyene Correia Santos, integrante do Júri da Crítica no 45º Festival de Cinema de Gramado, especial para o site da Accirs

A temperatura na Serra Gaúcha, durante os 10 dias em que transcorreu o 45º Festival de Cinema de Gramado, oscilou sobremaneira. Enquanto no primeiro final de semana, os termômetros chegaram a marcar 3º, nos últimos dias de evento, a temperatura ultrapassou a casa dos 22º, fazendo com que alguns desfilassem no tapete vermelho com figurinos mais despojados. Mas se o frio tentou congelar os ânimos do público no Palácio dos Festivais, algumas produções brasileiras projetadas nos primeiros dias de programação, como João, o maestro de Mauro Lima, Como nossos pais de Laís Bodansky e As duas Irenes de Fábio Meira, fizeram o contraponto, “esquentando” a plateia com suas histórias inspiradoras.

Fora de competição, João, o maestro foi escolhido como filme de abertura dessa edição do Festival. Centrando-se na trajetória artística do pianista e maestro João Carlos Martins, a produção conta com as interpretações de Davi Campolongo, Rodrigo Pandolfo e Alexandre Nero, alternando-se no papel do protagonista, respectivamente, na infância, juventude e maturidade. A partir de uma narrativa regada com flashbacks, conhece-se a obsessão de João Carlos Martins, desde pequeno, em executar peças musicais complexas com perfeição.

Seu talento aliado a muita dedicação e também, ao investimento do pai (Giulio Lopes) – que contrata o professor russo José Kliass (Caco Ciocler) para lhe orientar profissionalmente – será recompensado, tendo em vista o sucesso alcançado aos 20 anos, quando será convidado a se apresentar no Carnegie Hall. Não tarda, a agenda internacional de João Carlos Martins ficar repleta de compromissos e sua vida conjugal soçobrar. Em meio à crise no casamento, com a primeira esposa, ele sofre um acidente que deixa os movimentos, da sua mão direita, comprometidos. Tempos depois, será a vez da mão esquerda falhar com sua função motora, em consequência de um trauma sofrido na cabeça, e o pianista, sem muita alternativa, terá que se reinventar.

A essência da história, desenvolvida pelo diretor Mauro Lima (Meu nome não é Johnny e Tim Maia), é a paixão de um homem pela música e sua perseverança frente às adversidades que a vida lhe impôs. O roteiro tenta abarcar quatro décadas da vida de João Carlos Martins e, apesar de dar conta no núcleo profissional, deixa a desejar quando mira nas relações interpessoais do famoso pianista, não se aprofundando na abordagem. Tecnicamente, é um filme arrojado, com destaques para a direção de arte assinada por Cláudio Amaral Peixoto e a fotografia de Paulo Vainer, mas talvez, a busca de uma perfeição na reconstituição de época, de uma veracidade nas cenas em que os atores simulam tocar, tenha levado a um resultado menos emocionante do que poderia se imaginar, tendo em vista a vida do biografado. Tanto assim, que a ficção não supera a realidade e a comprovação disso é que a cena final, com o verdadeiro maestro regendo a uma orquestra, configura-se como a mais tocante de todo o longa-metragem.

Na segunda noite de festival, eis que desponta o filme Como nossos pais de Laís Bodanzky, que sagrou-se o grande vencedor do Festival de Cinema de Gramado desse ano, com seis kikitos (Melhor Filme, Direção, Ator, Atriz, Atriz Coadjuvante e Montagem). Nesse drama familiar, acompanhamos a personagem Rosa (Maria Ribeiro) num momento delicado de sua vida: seu casamento encontra-se desgastado por conta da constante ausência do marido Dado (Paulinho Vilhena), antropólogo e ativista ecológico; a relação conflituosa com a mãe Clarissa (Clarisse Abujamra) se acentua, após esta revelar num almoço de domingo, que Rosa é fruto de uma relação extraconjugal; e o trabalho numa empresa, em que escreve folders de cerâmica de banheiro, parece uma atividade cada vez mais frustrante, adiando seu sonho de ser escritora.

Como nossos pais, de Laís Bodansky

Como nossos pais, de Laís Bodansky

Para piorar a situação, Rosa ainda tem que cuidar de duas filhas e dar assistência ao pai Homero (Jorge Mautner) e abrigar a meia-irmã em sua casa, encontrando-se extenuada por conta da sobrecarga de responsabilidades. No entanto, ela começará a questionar seu posto de “mulher maravilha”, demandada pela sociedade e, porque não dizer, por ela mesma. Rosa não tardará para iniciar uma jornada de autoconhecimento, onde será necessário transgredir em alguns aspectos, a fim de se colocar no mundo como mulher, mãe, filha e irmã.
Pela primeira vez, dividindo as atribuições de roteirista com o ex-marido, Luiz Bolognesi, a cineasta Laís Bodanzky realiza um filme extremamente feminino e sensível, que reflete sobre a mulher na contemporaneidade e as possibilidades de se reinventar frente a fatores desestabilizadores (crise no casamento, relação conturbada com a mãe, encontro com o pai biológico), sem deixar de dialogar com o público masculino.

Contando com atuações memoráveis de Maria Ribeiro, Clarissa Abujamra e Jorge Mautner (que merecia ganhar o prêmio de Ator Coadjuvante, por sua ótima atuação improvisada), Como nossos pais corrobora o talento de Bodanzky por trás câmeras, sendo sua produção melhor urdida, tanto em termos estéticos como narrativos. Sem dúvida, já desponta como uma das melhores produções brasileiras do ano.

Numa edição em que as personagens femininas tomaram conta da tela do Palácio dos Festivais, outro filme brasileiro que se destacou foi As duas Irenes de Fábio Meira. Cria da Escuela Internacional de Cine y Televisión, o cineasta goiano estreou com um longa-metragem instigante, cujo roteiro foi inspirado na história de uma de suas parentas, que descobriu, já adulta, ter uma meia-irmã com o mesmo nome. Irene (Priscila Bittencourt) tem 13 anos e é filha “do meio” do casal formado por Tonico (Marco Ricca, que levou o Kikito de ator Coadjuvante) e Mirinha (Susana Ribeiro). Como se não bastasse ter que disputar a atenção dos pais com as duas irmãs – uma quase debutante e a outra cerca de cinco anos mais nova – Irene é surpreendida com a descoberta de que tem uma meia-irmã, com a mesma idade e nome (Isabela Torres), fruto de um relacionamento extraconjugal do pai com a costureira Neuza (Inês Peixoto). Sentindo-se traída pelo pai, com quem tem uma relação bem próxima, Irene usa de sua sagacidade para se aproximar da “nova irmã”. Inicialmente, prevalece o estranhamento diante daquela menina mais atraente, cheia de atitudes e com espírito livre, mas com a convivência, Irene (filha de Mirinha) percebe que longe de ser sua rival, Irene (filha de Neuza) será uma aliada, para ela poder lidar com os conflitos e as descobertas típicas da adolescência. Suas diferenças fazem com que se aproximem na difícil busca de uma identidade.

Em seu début na direção, Fábio Meira demonstra total controle do seu ofício, obtendo um filme coeso com ótimas interpretações, não só do elenco profissional mas, sobretudo, da dupla central de atrizes estreantes; com uma direção de arte impecável (Fernanda Carlucci levou o Kikito nessa categoria) que nos faz viajar para os anos de 1970; e uma fotografia bem construída por Daniela Cajías, que explora, inteligentemente, a exuberância da luz natural do interior goiano. Além disso, Meira imprime um tempo muito particular na narrativa, de algum modo cadenciado, contribuindo para que o espectador crie uma grande expectativa com relação ao desfecho e seja recompensado ao final. Não à toa, o júri oficial escolheu o roteiro de As duas Irenes como o melhor da categoria esse ano. O Júri da Crítica, por sua vez, levou em consideração a construção dos personagens e a qualidade do roteiro, para conceder-lhe o prêmio de Melhor Filme dessa edição do Festival de Gramado.

Sem deixar de lado as produções desse festival que elegeram uma mulher como personagem principal de suas tramas, há de se reconhecer os méritos de Pela janela da também estreante Caroline Leone. O filme saiu sem prêmios de Gramado, mas ganhou uma legião de admiradores, por conta da tocante história de Rosália, uma operária de 65 anos, que após três décadas dedicadas ao trabalho, é demitida sem justa causa. A experiente atriz de teatro e televisão, Magali Biff, dá vida à protagonista que vê a depressão bater à sua porta após a saída da fábrica de reatores, tendo em vista que, até então, sua rotina se restringia ao trabalho e aos afazeres domésticos. Preocupado em deixar sua irmã sozinha, José (Cacá Amaral) a leva para Buenos Aires, de carro, onde tem que fazer uma entrega. A partir dessa viagem, a narrativa ganha ares de road movie e acompanhamos, gradativamente, as mudanças ocorridas na personagem.

Inicialmente, ensimesmada e “segura” na sua rotina, Rosália vai se permitindo conhecer um outro mundo e se sociabilizando com estranhos. O ponto de virada dá-se com uma das cenas mais potentes do filme: quando ela e José vislumbram de perto as cataratas de Foz do Iguaçu, sendo hipnotizados pelo barulho e visual das quedas d’água. A diretora Leone explora com muita sensibilidade a beleza da natureza em estado puro – obtendo ângulos inusitados do ponto turístico -, bem como a interpretação minimalista de Magali Biff, primando por uma produção mais visual que verborrágica. Dialogando com As duas Irenes, no quesito tempo narrativo, é um filme que não tem pressa de acompanhar a protagonista numa encruzilhada que a vida lhe reservou. Ao escolher o caminho do autoconhecimento, Rosália reflete sobre sua condição no mundo, e as possibilidades de mudança, de adaptação frente a uma nova realidade. O filme de Caroline Leone, que também assina o roteiro, é uma obra contemplativa, otimista e inspiradora. Cinema na sua essência.

Último filme a ser exibido na mostra competitiva de longas brasileiros, Vergel de Kris Niklison, uma co-produção Brasil/Argentina, também saiu do festival sem conquistar prêmios. A história é sobre o processo de luto de uma mulher (Camila Morgado, em ótima atuação) que fica viúva durante as férias em Buenos Aires e que não pode voltar para o Brasil, sem antes resolver as questões burocráticas relacionadas ao transporte do corpo do marido. Reclusa no apartamento que alugou, ela só mantém contato pessoal com a vizinha (Maricel Alvaréz) do andar superior, que apareceu para regar as plantas da varanda do apartamento da amiga e deparou-se com a turista brasileira. Sem saber o que de fato aconteceu, para que a solitária mulher prorrogasse sua estada em seu país, a vizinha argentina começa a se relacionar com a brasileira. Praticamente, metade da duração do filme será dedicada ao envolvimento das duas, com cenas de sexo ousadas, lembrando, por vezes, o filme francês Azul é a cor mais quente (bastaria aqui, trocar a cor azul do título por vermelho).
Com isso, a diretora e roteirista Niklison desperdiça a chance de conceber uma obra mais densa, instigante, se concentrasse sua câmera apenas na personagem vivida por Camila Morgado, explorando sua solidão, angústia e medo. A premissa dilui-se à medida que a narrativa se aproxima do final, fazendo com que o espectador se lembre mais da estética dessa produção (destaques para as direções de arte e fotografia assinadas por Niklison) do que, propriamente, da travessia emocional percorrida pela personagem principal.

Completaram a mostra competitiva de longas-metragens brasileiros os filmes: O matador de Marcelo Galvão, vencedor de dois Kikitos (Melhor Trilha Musical e Melhor Fotografia); Bio de Carlos Gerbase, que ganhou o prêmio do Júri Popular, o Kikito de Melhor Desenho de Som e um Prêmio Especial do Júri, para o diretor gaúcho; esse último prêmio também foi concedido a Eliane Giardini e Paulo Betti pelo trabalho de dramaturgia em A fera da selva, dirigido pelos dois atores e Lauro Escorel.