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Publicado por em set 2, 2019 em Artigos |

Os pássaros de Massachussetts

Por Giordano Gio

É curioso como às vezes um detalhe estético que outro nos faz girar uma chave no processo de codificação daquilo que vemos na tela, no, para alguns, inevitável vício de posicionar a obra dentro desta ou daquela tradição. 

Um determinado tipo zoom ou corte em Bacurau talvez nos afaste de Glauber e nos aproxime de Peckinpah e Carpenter; o uso de Tina Turner em Pacarrete dá um duplo twist carpado em cima do melodrama farsesco que desenha até então. 

No caso dessa pequena pérola portoalegrense, o uso de uma trilha que reconheci como a música-tema da Fonte das Fadas nos jogos de Zelda. 

Até então, a mente inadvertidamente passeava por uma sensação que remetia à Nouvelle Vague ou ao Mumblecore por questões que hoje, de tão amplas e transmutadas na história do cinema, já não necessariamente se conectam diretamente a essas tendências, ainda que as tenham em sua genealogia. 

Digo isso pois o intertexto com o universo dos videogames me fez passar a perceber os “recortes” ou “retalhos” de cotidiano que vinha assistindo na vida daquelas figuras, como sequências semelhantes a “minigames” ou pequenas “quests” dentro de um jogo maior, de mundo um pouco aberto. 

Essa virada de chave fez com que eu colocasse alguns personagens que, num olhar viciado pelo clássico, parecem “não ir a lugar nenhum”, dentro do conceito de NPC (non-playable characters). Enxergando o filme dessa maneira, não é que a trama “abandone” o senhor que busca um cachorro-quente que talvez não mais exista, mas sim que a “quest” principal pode seguir sem se deter nesses percalços. 

É notável, também, a força que o filme tem em construir muito com tão “pouco”. Através de várias dessas mini-quests e NPCs, constroi-se afeto e empatia e que talvez só percebamos essa força num momento de abraço em que “sentimos” muito junto a personagens que mal conhecemos – aí talvez uma herança do coreano Hong Sangsoo, citado como referência pela equipe. Na minha leitura, erra quem enxerga apenas um acúmulo de vazios aqui 

Nesse filme, cuja autoria transborda coletividade no diálogo entre a direção, roteiro, montagem e atuações perante as limitações de produção, também tem como eixo central a relação com a cidade.

Se Porto Alegre desenha-se mais uma vez como a melancólica cidade das despedidas – após o longa Tinta Bruta, de Filipe Matzembacher e Márcio Reolon, e o curta Sob Águas Claras e Inocentes, de Emiliano Cunha – há uma diferença crucial na Porto Alegre, em especial, no Bom Fim dessa galera aqui. 

Não há, em Os Pássaros de Massachussetts, uma opressão ou assombro constante da cidade perante os personagens. Embora o tédio e a melancolia estejam ali (e não poderiam deixar e estar), há inclusive um certo conforto, humor e pequenos encantos a cada esquina dos bairros residenciais de classe média pelos quais a câmera passeia. Confesso que é mais parecida com a Porto Alegre que vejo ao sair nas ruas.

Assim como no curta do Emiliano, uma narrativa em mosaico, um pouco frouxa (e isso não é um demérito) ajuda a construir nossa cidade portuária como uma que encanta e exaure. Por sinal, é uma sessão dupla pedindo para acontecer. No curta, o rio é ferramenta simbólica, nesse longa é parte do dia-a-dia. Diferente das alegorias a simplicidade desse longa permite que recuperemos o XP numa noite de sono para preparar para as novas pequenas quests do dia.