Páginas
Seções

Publicado por em set 2, 2019 em Artigos |

O paradoxo de “Raia 4”

Por Ivonete Pinto

Há quem tenha achado “gauchice” o júri da crítica ter premiado Raia 4 na 47ª edição do Festival de Cinema de Gramado. O festival é gaúcho, o  júri é organizado por gaúchos, mas apenas dois dos cinco jurados eram do Rio Grande do Sul (havia até um chileno no grupo). A produção assinada  por Emiliano Cunha também foi premiada com kikitos de  Melhor Fotografia e  Melhor Longa-Metragem da Mostra Gaúcha.

A discussão quanto a um eventual favoritismo  ficou deslocada, pois o que importa num possível questionamento é entender por que Raia 4 ganhou o prêmio da crítica e não o Pacarrete  (Allan Deberton, 2019), o filme  mais celebrado da edição e que efetivamente levou oito  prêmios, entre eles o  do júri oficial e do júri popular.

Um dos critérios que costuma nortear as decisões dos júris da crítica é levar em conta o investimento  em linguagem e  a presença de uma estética em sintonia com um cinema contemporâneo arrojado, onde o risco é inerente. A crítica deve chamar a atenção para o que é novo – ou dialoga com o novo – e não chancelar o que já nasce chancelado. Este raciocínio não é sempre consensual e naturalmente vai depender do conjunto dos  filmes em julgamento, do perfil de cada crítico e dos humores de contextos variados. É de se supor, no caso desta edição de Gramado, que os citados critérios tenham guiado o júri da crítica. Pacarrete arrebatou a todos, incluído a  crítica, pela sua universalidade, pelo roteiro sem arestas, pela interpretação magistral de sua atriz protagonista, e foi o grande filme do festival. Ao dar o prêmio a Raia 4, no entanto, o júri da crítica optou não pelo “melhor”, mas pelo o que é uma promessa, um sinal de que ali há um diretor que se deve prestar atenção.

Raia 4 tem uma direção madura, no sentido  da encenação, do estreante em longas Emiliano Cunha, que demonstrou talento em curtas como  O Cão (2011) e Tomou Café e Esperou (2013).  Oriundo de uma graduação em cinema,  Cunha é de uma geração crescida em festivais e que tem justamente  sua primeira janela de exibição nos festivais. Também professor, interessa-se pelo chamado cinema de fluxo, onde a experiência do tempo é crucial,  e não busca o arrebatamento, a emoção fácil. Sua personagem central é uma  adolescente  ensimesmada (Brídia Moni), com dificuldade de comunicação com  a família e com os amigos. Nada muito diferente de adolescentes em geral. O cinema gaúcho, em Gramado inclusive, já exibiu a estreia em longa de José Pedro Goulart (Ponto Zero, 2016), no qual  um adolescente, é pintado como um ser quase dostoiveskiano de tão soturno. Também já vimos em Gramado um outro adolescente, este baseado em personagem real, que buscou no suicídio sua redenção (Yonlu, Hique Montanari, 2017). Haveria outros exemplos, mas só para ficar nos lançados em Gramado, vale como analogia. Já a protagonista de Raia 4 (atriz), embora suas dificuldades e seu deslocamento na comparação com amigas da escola, não é descrita com transtornos psíquicos. É alguém que tem pai e mãe mais ausentes que presentes, mas não é nenhuma abandonada.

Então, o que se pode questionar em Raia 4 é seu roteiro, assinado também pelo diretor, que brindou o espectador com um final inesperado. Tão inesperado quanto chocante. Por não haver uma evolução dramática na construção da personagem, o final soa como as típicas gratuidades de filme de horror. Talvez aí também tenha se apegado o júri da crítica: enxergou valor num desenlace abrupto. Fruto de várias passagens por laboratórios de roteiro, Raia 4 buscou um final não óbvio (não significa que os laboratórios tenham aconselhado este final) e com isto arrisca-se com galhardia. O filme rompe o  contrato que estabeleceu com o espectador, baseado no realismo, onde sobretudo  a direção de arte (Valéria Verba e Sheila Marafon) e a fotografia (Edu Rabin) colaboraram para construir uma narrativa atada ao verossímel. Sim, há a presença do suspense no ambiente da piscina, habitat da protagonista nadadora, e seria natural que este  suspense  desembocasse em algo, já que é  do perfil do diretor surpreender com o desfecho. O cinema de Emiliano Cunha vem se desenhando como um cinema de surpresas. A chave de seus curtas envolve sempre o inesperado e o espectador nunca fica indiferente quanto ao final dos filmes. Levar esta estratégia para um longa é mais complicado, mas não deixa de ser excitante para o público. Quando Lisandro Alonso, em Jauja (2014),  dá uma virada espetacular no enredo, tinha ainda um terço do filme para desenvolver seu artifício. No filme gaúcho, é o espectador quem precisa desenvolver isto depois da sessão.

 A pergunta que fica é: em busca de uma solução não óbvia, vale sacrificar toda uma construção coerente,  regida pela lógica da causa e efeito, e simplesmente  levar o público a pensar que isto não faz sentido? O cinema de gênero se nutre de personagens psicopatas; na vida real estamos rodeados por psicopatas. O que bate, digamos, como  excêntrico, é sermos apresentados ao traço mais definitivo da personagem somente no final.  Não se trata de uma contradição da personagem, pois ela de fato poderia evoluir para isto; se trata de uma  contradição narrativa, pois a forma do filme não condiz com a atitude da personagem. Isto é um problema, como já dito aqui, que paradoxalmente pode depor contra o filme (o roteiro) e ao mesmo tempo oferecer combustível para ricas discussões.

Nada disto significa que o filme não merecesse os prêmios e que esteja circulando com mérito pelos festivais. O domínio na direção de Emiliano Cunha é inegável, até por se cercar de profissionais que também dominam suas áreas. O proveito que tira do universo diegético da piscina, assumidamente inspirado, entre outras referências, na atmosfera da Lucrécia Martel de A Menina Santa (2014), é um elemento a mais que valoriza o filme. E o fato de apresentar um final controverso, não diminui seu valor. Problematizar uma opção do roteiro é estímulo intelectual que não muitos filmes alcançam, e este é o caso de Raia 4.