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Publicado por em mar 23, 2014 em Artigos |

O lado trágico (Do Outro Lado, 2008)

do_outro_ladoPor: Adriano de Oliveira Pinto

O jovem alemão de ascendência turca Fatih Akin participou de 12 filmes como ator, mas ultimamente vem se destacando na cadeira de diretor, tendo vencido o Urso de Ouro em Berlim pelo drama Contra a Parede (Gegen die Wand, 2004) e, de modo mais recente, foi laureado com o prêmio de melhor roteiro no Festival de Cannes retrasado por Do Outro Lado (Auf der Anderen Seite, 2007). A justificativa para tal honraria a este filme do ano passado, somente agora exibido em nossos cinemas, floresce à mente e ao coração ao assisti-lo: trata-se de uma imitação da vida, construída com a idêntica ardilosidade pela qual usualmente o destino nos prega peças.

Novamente, Akin trabalha com o tópico dos turcos na Alemanha contemporânea, como o havia feito na sua obra de 2004 estrelada por Birol Ünel e Sibel Kekilli. Também os temas da globalização, da tortuosa ponte cultural Oriente-Ocidente e das identidades própria e atávica em solo estrangeiro seguem esmiuçados neste seu produto mais recente. Todavia, há diferenças formais que se estabelecem entre as películas, tal a distribuição do peso dramático – se em Contra a Parede o foco se concentrava em dois fortes protagonistas, Do Outro Lado soa como filme coral.

A força desse roteiro está não somente em seus personagens robustos dramaticamente, de plástica realista, de essência fortemente humana; verdadeiros torpedos teleguiados pelas emoções, sem em momento algum aludirem falsidade ou impostação para tamanho desígnio. Cabe então elogiar a competência de seus intérpretes e ainda um primoroso acerto de casting, que, nos traz de volta a sumida Hanna Schygulla, musa de Rainer Werner Fassbinder; emula uma Meg Ryan de antigamente (claro, apenas do ponto de vista físico) na compleição da polonesa Patrycia Ziolkowska, nos brinda com um veterano do cinema turco (Tuncel Kurtiz) e com uma aprazível revelação: Baki Davrak e sua composição do personagem Nejat.

O texto escrito pelo próprio diretor se debruça aos olhos da platéia tal uma teia – de situações, sentimentos e desejos – construída lentamente e com argúcia. A argúcia do destino, do fado: cruzam-se e, principalmente, afastam-se personagens e eventos, com a mesma magia (e o mesmo horror) com que a vida assim o faz. Akin, dentro de suas pretensões como criador e contador de uma história, não quer somente brincar de ser Deus; ele quer imitar o Grande Arquiteto ou ao menos ser um misto de vate e testemunha quanto à agrura dos seres humanos frente à Roda da Fortuna. Consegue isto, com boa efetividade. Tem armas poderosas para tanto, como a partição interna de seu filme, uma disposição simples e eficaz: a película se constitui de três partes, duas delas intituladas de modo a antecipar as tragédias que serão narradas, numa lembrança da dramaturgia grega antiga, e a terceira recebe o mesmo título da obra em questão. Em verdade, isto equivale a uma estrutura do tipo pré-história, história e epílogo, quando focalizada do ponto de vista da personagem Ayten (Nurgül Yesilçay), e com isto Akin propõe um encadeamento vital, onde a história pessoal de cada um é um capítulo indireto quanto à vida do outro, no espírito do livro da existência individual.

Do Outro Lado é uma história de pessoas desencontradas entre si. E isto não apenas na separação espacial, mas naquela das idéias. Só que a distância física se torna o primeiro passo para a incomunicabilidade, frisa a trama, e nesse ponto, o destino esconde a mão que ajuda, apenas observando insensivelmente “os atores de Deus”, como diria Jorge de Lima, tatearem no escuro, atônitos. O sorriso irônico da Sorte contempla uma série de quase-encontros, de não-casualidades, de átimos situacionais e temporais a evitar aspirações pessoais, a mudar rumos, quase sempre apontando a pior direção. O diretor pinça com sutileza tais momentos, testifica a agonia do não-realizado, fazendo isto das mais variadas formas, num admirável exercício narrativo. Tem ele a bela ousadia de repetir uma cena integralmente (a primeira do filme) já nos minutos finais da projeção, para que nós a vejamos com outros olhos e saibamos encaixar essa “peça” no mosaico por ele proposto. Em outro momento de déjà vu, mas somente quanto ao enquadramento e movimento de câmera, uma vez que as cenas do embarque e do desembarque de caixões no Aeroporto de Atatürk são distintas, faz com que estas guardem entre si o mesmo significado comum de tragédia.

O feriado muçulmano do Bayram é colocado na trama a representar uma metáfora – bem explorada por Akin –, uma vez que fala do tema do sacrifício. Pois todos os personagens essenciais de sua ciranda se mostram tocados de alguma forma em tal sentido, uma vez que uns são literalmente imolados e outros renunciam algo de si ao longo da trama. E até nesse aspecto o diretor-roteirista estabelece uma ligação entre Oriente e Ocidente através de um diálogo que converge as crenças islâmica e cristã quanto a um ponto: a imolação de Isaac por Abraão encontra similaridade naquela de Ismail por Ibrahim.

O plano final da obra é um arremate de precisão, feito no momento exato. Representa em si uma síntese de vários elementos tipicamente humanos: a esperança, o perdão, a paciência. O homem frente ao mar – e o que melhor poderia representar a incontrolável e caótica força da Natureza, do que o oceano imenso, que ora arremete de modo tempestuoso, ora marulha docemente? Assim é o fado nosso também.

É a crença no homem, apesar das fraquezas e mesquinharias deste, e na capacidade dele em se redimir, que Fatih Akin aqui assinala serem os únicos aríetes no embate contra o fatalismo e o fel da Sorte. A vida não perdoa, mas as pessoas perdoam. Eis a lei fraterna do ser social – e sobretudo regra da tolerância e da convivência, não esqueçamos de que se trata de uma película que igualmente fala de diferenças culturais num mundo globalizado – neste campo de provações e loucura, é o que nos fala Do Outro Lado, um filme que insiste, principalmente ao seu terço final, na procura humana pela redenção.

Do Outro Lado (Auf der Anderen Seite)
Direção: Fatih Akin
Roteiro: Fatih Akin
Com: Baki Davrak, Nurgül Yesilçay, Tuncel Kurtiz, Hanna Schygulla, Patrycia Ziolkowska e Nursel Köse
País de produção: Alemanha/Turquia
Ano de lançamento: 2008
Não disponível em DVD no Brasil
Duração: 122 minutos