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Publicado por em set 3, 2018 em Artigos, Festival de Gramado |

O hibridismo chegou ao Sul

Apontamentos sobre a mostra de longas gaúchos no Festival de Gramado
por Ivonete Pinto, mediadora dos debates da Mostra de Longas-metragens Gaúchos do 46º Festival de Cinema de Gramado, especial para o site da ACCIRS

A mostra de longas gaúchos desta 46ª edição do Festival de Cinema de Gramado foi representativa da atual produção do Estado. Nada que salte aos olhos, mas ao apontar para uma multiplicidade de temas e para o real como combustível para contar histórias, sai de um marasmo que já estava se tornando habitual. Sobre as temáticas, vale ressaltar nesta seleção, que há muito não se viam filmes tão diferentes em suas geografias. Dos 18 filmes inscritos, cinco preencheram as tardes do festival, com direito a debates acalorados na sequência (alguns, ao menos). Vimos as montanhas do Aconcágua argentino em Arrieros; o Oriente Médio em A Palestina Brasileira; o Rio de Janeiro em Grandes Médicos; a Porto Alegre e o mundo/internet em Yonlu e o interior gaúcho em Música para Quando as Luzes se Apagam. Também no formato houve variedade, pois vimos do documentário mais acadêmico, ao totalmente contaminado pela ficção. Todos com um forte lastro no real. Um pequeno mosaico de produções dirigidas por jovens e por veteranos. Todos homens (exceto a direção dividida no longa Grande Médicos), mas desconhecendo-se o que foi inscrito, impossível conjecturar sobre a falta de diversidade de gênero. Quem sabe em 2019 os ventos da modernidade alcancem este aspecto da produção gaúcha em longa-metragem.

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Cena do documentário Grandes Médicos, de Luiz Alberto Cassol e Marilaine Castro

 

Na ordem da programação, vimos Grandes Médicos, o quinto longa do também curta-metragista Luiz Alberto Cassol, que assina a direção com a produtora Marilaine Castro. Um documentário de “cabeças falantes”, cuja atração não está na forma, mas nas pessoas que entrevista e nas histórias que narra. Grandes Médicos concentra-se em contar, através de depoimentos e algumas imagens de época, os principais feitos de oito nomes imprescindíveis para a história da medicina brasileira que extrapola para as política públicas: Oswaldo Cruz, Adolpho Lutz, Carlos Chagas, Manoel de Abreu, Zilda Arns, Euclydes Zerbini Juscelino Kubitschek e Emílio Ribas. Impressiona a quantidade e a qualidade de informações dos bastidores das suas descobertas. A montagem, por sua vez, acertadamente privilegia o tom humanista das trajetórias, sendo que ao final, com o depoimento emocionado de Adib Jatene sobre Zerbini, compreendemos mais os avanços e retrocessos da pesquisa científica no País. País que conseguiu o marco de realizar o primeiro transplante de coração da América Latina e quinto no mundo, e hoje vive a conquista apenas como nostalgia. Um filme, por fim, que soa deslocado em um festival, em função de sua forma, mas que apresenta um conteúdo tão admirável e necessário que resultou em um grande presente aos poucos espectadores da sessão. Espera-se que faça boa carreira na TV.

Arrieros e o universo dos “gauchos”

 

O documentário Arrieros, exibido no segundo dia da mostra gaúcha, foi uma grata surpresa. Primeiro filme do fotógrafo Marcelo Curia, trata-se de uma abordagem etnográfica sobre um universo de “gauchos”, que desconhecemos por completo. O filme, embora ancorado em entrevistas, mostra também as lides dos tropeiros (arrieros) argentinos que carregam em mulas os equipamentos e mantimentos para os aventureiros que tentam escalar o Aconcágua, a maior montanha das Américas. O gradual desaparecimento desta atividade é o centro das conversas e através delas podemos projetar uma série de mudanças neste tipo de aventura que já conta com helicópteros para substituir as mulas. O trabalho mais que árduo, sofrido dos arrieros em condições climáticas que podem culminar em acidentes fatais, é quase tergiversado pelo documentário. O que prevalece mesmo é a preparação das jornadas, a solidão em lugar tão inóspito e os tipos humanos tão diferentes. A curiosidade de assistirmos a um filme etnográfico gaúcho, seara em que não temos a menor tradição, suplanta objeções a um acabamento mais rigoroso.

Dos conflitos internacionais para os conflitos internos de um adolescente especial. Yonlu, de Hique Montanari, que pode ser visto já nos cinemas, foi o filme que mais levou público tanto para o Palácio dos Festivais quanto para o debate. É a história real de Vinícius Marques, que aos 16 anos, em Porto Alegre mas conectado com o mundo, se suicidou com a ajuda de internautas de vários países. A língua que ele mais falava, de acordo com o filme, era o inglês e por isso o trailer que passou nos cinemas não possuía um único diálogo em português, provocando uma estranheza que no entanto o filme esclarece. Yonlu foi o título que, na comparação com os outros quatro da mostra, mais investiu em linguagem, mais ousou no roteiro e mais alcançou resultados estéticos. Entrar na mente deprimida de um talentoso músico parecia ser o maior desafio. O caminho estava na própria obra do personagem, rica não só nas letras das músicas, como nos desenhos que deixou. Também contribuiu para a investigação, o fato de que Montanari, em seu longa de estreia, ter contado com material registrado na internet, como as inúmeras conversas, e nos diários. Um filme que pulsa na batida das desesperanças modernas; uma história tragicamente espetacular que precisava ser filmada.

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Yonlu, de Hique Montanari

 

E pode-se dizer que Música para Quando as Luzes se Apagam é outra história urgente. Em registro documental híbrido, explora a transformação de Emily em Bernardo, adolescente do interior do Rio Grande do Sul (a produção foi rodada em Lajeado, Estrela e Arroio do Meio).O artifício dramatúrgico para entrar na casa da menina e revelar sua história é a personagem ficcional vivida por Júlia Lemmertz. Como uma cineasta, ela se interessa por Emily e vai acompanhando sua rotina rumo à afirmação a uma identidade masculina. Tudo muito delicado e fragmentado. Fotografado com luz natural e com muitas sequências noturnas, é um filme deveras escuro, que não tem medo de correr riscos. Ismael Canepelle também faz sua estreia na direção (ele é autor do livro Os Famosos e os Duendes da Morte adaptado para o cinema). Música… lembra um pouco Morro do Céu, de Gustavo Spolidoro, mas com o componente da identidade sexual como questão. Enquanto neste o diretor insuflava as situações atrás da câmera, em Música… esta função está com a personagem de Júlia Lemmertz. Atriz, aliás, que é um trunfo na encenação, pois consegue pulverizar-se entre os não-atores e tornar tudo mais sofisticado. Ou mais confuso, dependendo do ponto de vista. Já exibido em Brasília no ano passado, a produção tem planos de estrear comercialmente em 2019 nos cinemas.

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Música para Quando as Luzes se Apagam, de Ismael Cannepelle

 

Olhando em retrospecto, fica claro que a essência desta mostra foi o real, seja em produções francamente documentais, seja no cruzamento sugerido da ficção com a não ficção. Este recorte das produções gaúchas seria indicativo de que investidas como Rifle, de Davi Pretto, lançado há dois anos, repercutem. São filmes ainda isolados na nossa cinematografia se considerarmos que o estado de Pernambuco, por exemplo, está muito mais conectado a esta tendência do cinema contemporâneo que se reinventa na mistura dos gêneros. O curioso é que, se pensarmos que Ilha das Flores, tributo maior desta mistura, foi lançado no mesmo festival lá se vão quase 30 anos, este movimento tem custado a se cristalizar por aqui. Com esta onda de filmes, talvez a absorção das duas linguagens possa render mais frutos rumo a um hibridismo inventivo.