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Publicado por em set 6, 2021 em Artigos |

Mostra Assembleia Legislativa – 49º Festival de Cinema de Gramado

Por Rodrigo de Oliveira

O 49º Festival de Cinema de Gramado foi virtual, nos mesmos moldes de 2020. E não teria outro jeito, visto que a pandemia ainda nos afeta e muito. Superior ao ano anterior, mas com uma atmosfera de expectativa pela próxima edição, o Festival de 2021 pareceu um show de abertura para o evento principal, o tão aguardado cinquentenário que acontece em 2022. Tomara que estejamos vendo a pandemia no retrovisor ano que vem, para que possamos estar em Gramado novamente.

Embora a produção tenha sido afetada pelo COVID-19, tivemos bons filmes na programação dos curtas gaúchos, o tradicional Prêmio Assembleia Legislativa. Sempre um prazer participar do Júri da Crítica do nosso querido Gauchão – ainda mais com as boas companhias dos colegas Siliane Vieira e Victor Hugo Furtado – e notar que a qualidade dos títulos se mantém em alto nível. Neste ano, escolhemos como vencedor o ótimo Eu Não sou um Robô, de Gabriela Lamas, um trabalho de guerrilha que contou com uma equipe reduzida por conta da pandemia – no set, apenas Lamas, Maurilio Almeida (a Mosca) e a diretora de fotografia Livia Pasqual – e que transformou adversidade em um material de criatividade ímpar.

Abaixo, você confere pequenos textos sobre todos os curtas-metragens gaúchos exibidos na Mostra Assembleia Legislativa. A ordem é a da programação do Festival, que separou os títulos em 4 programas. Os textos também são encontrados, com informações sobre a equipe e fotos, na revista digital Almanaque21 Festivais neste link: https://almanaque21.com.br/2021/08/14/almanaque21-festivais-festival-de-cinema-de-gramado-2021/   

Jardim das Horas, de Matheus Piccoli

Parece um dia comum na vida de Seu Alves (Paulo Flores). A chegada de sua nora Tereza (Sophia), no entanto, nos desvela as verdades por trás da vivência daquele senhor solitário, que sofre com uma doença degenerativa. Matheus Piccoli concebe um curta sensível e com grande valor de produção. Nota-se o esmero na direção de arte – o plano sequência que abre o curta dá um passeio pela casa de Seu Alves; o quarto de Antônio e a foto colada no guarda-roupa, desbotada e rasgada, nos mostra passagem de tempo – e um belo trabalho de trilha sonora. Tudo isso a serviço da história, uma verdadeira cebola, cheia de camadas, descascadas uma a uma, sem pressa.

Cacicus, de Bruno Cabral e Gabriela Dullius

O barulho incessante da máquina de lavar e secar é uma constante na vida de Laura (Jessica Ruviaro), filha de um austero e religioso dono de lavanderia (Edson Queiroz). A vida lá fora a chama através de recados deixados nas roupas de Camila (Vick Maciel). Poderia ela se libertar do jugo do pai? Em Cacicus, Bruno Cabral e Gabriela Dullius nos conduzem por uma história singela, com bom andamento e ideias interessantes. A referência ao pássaro do título, com Laura se vendo engaiolada e buscando escapar para voar um pouco, não é soletrada ao espectador, um bom sinal. Depois de experimentar a liberdade, tudo indica que Laura não será mais a mesma.

Era Uma Vez… Uma Princesa, de Lisiane Cohen

Histórias como a de Nina, infelizmente, existem aos montes. Mulher que conheceu seu “príncipe” quando jovem, cultivou família, laços, filhos. Ainda que o sujeito parecesse violento, isto era sempre varrido para debaixo do tapete – até ser tarde demais. Lisiane Cohen faz um trabalho corajoso, borrando as linhas entre doc e ficção. Se coloca na voz e no corpo da protagonista fictícia, em um depoimento de coração aberto. Sua sobrinha, Laura, se transforma em filha de Nina, Carol, sentindo as cicatrizes de um passado de dor. O trabalho de ambas é pungente, com Lisiane sendo o destaque como a depoente que serve como alerta para muitas mulheres.

Depois da Meia Noite, de Mirela Kruel

Viver uma paixão intensa e ver ela esvanecer com o cotidiano não é algo fora do comum. Mirela Kruel brinca com a ideia do conto de fadas para contar a história do jovem casal Gabriel e Lucas. Do sexo apaixonado, à decisão de morar juntos, passando pela solidão que pode surgir mesmo acompanhados, Depois da Meia Noite nos apresenta essa progressão do namoro. A história não traz muita novidade, mas o capricho da mise-en-scène de Kruel e a belíssima fotografia de Eduardo Nascimento Rosa agregam pontos ao trabalho. Desde o vermelho forte da cena inicial ao sol que se desvela no rosto de Gabriel ao final, o curta tem na plasticidade grande predicado.

Uma Dia de Primavera, de Lisi Kieling

Tente não se comover ao acompanhar a trajetória da protagonista de Um Dia de Primavera. Imagine você, em uma corriqueira manhã, sair para jogar o lixo e encontrar um bebê na lixeira. Qual seria sua reação? Provavelmente, não muito diferente do que Renata (Giovanna Zottis, ótima) fez. Primeiro, você acolhe a criança. Depois, pensa no que fazer, como avisar as autoridades, procurar por assistência social, etc. A cineasta Lisi Kieling nos apresenta de maneira muito sensível as tomadas de decisões de Renata em um dia que tem tudo para mudar sua vida. Com poucos diálogos, o curta se segura na atuação de Zottis e no extraordinário da situação. 

Nave Mãe, de Gisa Galaverna e Wagner Costa

Gisa Galaverna parte de sua experiência transformadora como mãe para dar o pontapé inicial neste documentário, que se propõe a dar as mais variadas facetas diferentes que o papel de mãe pode ter na vida das crianças. Temos a avó, a mãe jovem de primeira viagem, pessoas de diferentes raças e origens, casais homoafetivos (tanto homens quanto mulheres). O mosaico é bem abrangente e ganha riqueza pelas experiências que cada pessoa divide com o espectador. Como o tempo é pequeno e temos muitos depoentes, por vezes os assuntos não ganham o aprofundamento que deveriam. Mas é válido, principalmente para quem sonha com a maternidade.

Rota, de Mariani Ferreira

Um pai assiste a vídeos antigos e tenta se reconectar com a filha através de mensagens de celular. Não demora para que entendamos o que gerou a cisão familiar, com a protagonista se mostrando incomodada pelo comportamento do pai para com sua namorada. Em poucas linhas, isso é Rota, um curto, mas eficiente trabalho de Mariani Ferreira. Sirmar Antunes interpreta o pai saudoso, que tenta remendar a situação, enquanto Paula Souza interpreta a filha. Filmado durante a pandemia, tem mais um detalhe que o liga a esse nosso momento: quantas discussões temos empurrado com a barriga para resolvê-las melhor quando pudermos estar cara a cara?

Tormenta, de Emiliano Cunha e Vado Vergara

O desenho sonoro de Tormenta é um dos grandes predicados deste curta-metragem onírico, dirigido por Emiliano Cunha e Vado Vergara. Quem responde por esta função sonora na produção são os premiados Rita Zart e Tiago Bello, que envolvem os espectadores com sons quase hipnóticos. O filme em si é uma viagem sensorial que mostra fragmentos de memória da vida de uma criança – aliás, a narração que abre é feita por uma menina, Olivia Guerra Lacava, com o texto adaptado da fábula de Esopo, Os Sapos que Desejavam um Rei. Os outros dois terços do curta são defendidos por Maria Flor e Marília Feix. Na falta do cinema, assista com fones de ouvido.

Não Sou Eu, de Theo Tajes

A escritora Claudia Tajes produz, roteiriza, narra e estrela esse poema filmado, dirigido e montado por Theo Tajes, seu filho. Estrelar é um jeito de dizer, visto que o curta é todo concebido em cima de fotos. Mas como estamos vendo a escritora desde sua infância, ficamos confortáveis em usar o termo. Em um texto que elabora a força das memórias, Claudia romantiza o passado e imagina uma realidade em que não lembrasse mais de pontos importantes da sua história – sentimento possível de transportar para qualquer espectador. É uma narração agridoce, que dá sustentação para as fotos que passeiam na tela, como uma grande apresentação de slides.

Comboio pra Lua, de Rebecca Francoff

Comboio pra Lua parte da amizade dos dois protagonistas, a brasileira Rebeca  Francoff e o português Pedro Colaço, para desenrolar a história. Dirigido pela própria Rebeca, o filme parece começar no meio do caminho, como se já conhecêssemos as duas pessoas que acompanharemos nos próximos 14 minutos. Apesar de gerar certa demora para que entremos na obra, isso acontece – principalmente quando notamos que a força do filme está exatamente nos dois protagonistas. Entre conversas sobre como Belo Horizonte pode ser um “ovo” ou como Portugal não é visto na Europa como um país do primeiro mundo, acabamos nos afeiçoando pela dupla.

Fé, de Thais Fernandes

Em apenas três minutos, a diretora Thais Fernandes nos apresenta um retrato afetuoso de sua mãe, Dionéia Fernandes, no curta-metragem . Com poderes mediúnicos, Dionéia “vê gente morta” – como diria o menininho de O Sexto Sentido (1999) – e explica a maneira como consegue enxergar a sorte ou o futuro das pessoas. Thais se mantém uma ouvinte curiosa durante a fala da mãe, que até puxa o álbum de fotos e relembra o momento de sua gravidez. Ao final, a pergunta que não quer calar: é possível acreditar em mediunidade? Dionéia responde com sagacidade a respeito da filha crer ou não em seus poderes. 

Tom, de Felippe Steffens

Nesta bela animação comandada por Felippe Steffens, um cachorro astronauta espera ansiosamente pelo retorno de alguém especial. O filme brinca com o conceito da fidelidade canina – embora não seja tão estranho um cão no espaço, visto que um dos primeiros animais a entrar em órbita foi exatamente uma cadela vira-lata chamada Laika. Enquanto conferimos nosso protagonista canino executando suas funções em sua espaçonave, a música dá o tom à história. A trilha foi composta por Gustavo Foppa e Jonts Ferreira e é um dos destaques não só do curta, como de toda a Mostra Competitiva Gaúcha. 

Solilóquio, de Marcelo Stifelman

Solilóquio faz jus ao seu nome. Vemos o monólogo de uma atriz (Laura Hickmann), recém saída do palco, que conversa consigo mesma a respeito do Teatro, do seu desempenho e de suas desilusões profissionais. É um relato carregado de emoção, com a câmera do diretor Marcelo Stifelman mantendo-se fixa no espelho que nos mostra o rosto maquiado em tons vermelhos de Hickmann. Ao final, uma breve visita ao palco. O texto é baseado em A Gaivota, de Anton Tchekhov, e embora muito curto, se mostra um experimento interessante, ainda mais para mostrar o alcance dramático da atriz solitária, que também assina o roteiro.

Nilson Filho do Campeão, de Diego Tafarel

Nilson, Filho do Campeão conta a história de um homem divorciado (Frederico Vittola) que passa por um período complicadíssimo de sua vida. Depressivo, sem muita perspectiva, ganha seu pão se vestindo como coruja, mascote de uma loja de calçada. Entre seus flertes com a garota (Édina Marques) no ponto de ônibus e sua vontade de retomar o relacionamento com Laura (Kaya Rodrigues), vemos o protagonista empurrar seu cotidiano com a barriga. Isso até ele decidir dar um basta nessa sua vida passiva. A fantasia de coruja é ótima, muito expressiva, e Vittola nos convence do drama pelo que seu personagem passa, com uma pitada de humor. 

Eu Não Sou um Robô, de Gabriela Lamas

Eu Não Sou um Robô é tão criativo quanto divertido— e não esquece de colocar o dedo na ferida na questão do isolamento social. Dirigido por Gabriela Lamas, foi gravado com apenas três pessoas no set: Lamas (que vive a protagonista), Maurilio Almeida (a Mosca) e a diretora de fotografia Lívia Pasqual. Na trama, a protagonista falha ao tentar passar nos testes ReCAPTCHA na internet e tenta se convencer de que não é um robô. Na cozinha, encontra uma mosca e começa a trocar uma ideia com o inseto. A narrativa, a naturalidade com que Lamas interpreta o verborrágico texto e a fantasia da mosca são predicados óbvios deste belo curta.

Desvirtude, de Gautier Lee

A Universidade é o lugar do saber por excelência. Ou deveria ser. Nem entre as paredes do local estudantes negros estão livres de sofrer com o racismo, como mostra o contundente curta Desvirtude, de Gautier Lee. Na trama, a jovem Kenia (Évellyn Santos) é vítima de crime quando uma professora a ofende junto de seus amigos – estes não concordam que o xingamento tenha sido um ato racista, o que deixa Kenia ainda mais chateada. Ela tenta fazer sua voz ser ouvida pela direção da Universidade, mas encontra ouvidos moucos. O desfecho é um reflexo de muitas histórias que seguem a mesma progressão de impunidade. Forte e necessário.

Noite Macabra, de Felipe Iesbick

Divertida ode aos filmes de horror, Noite Macabra é criativo ao misturar gêneros e se mostra um dos esforços mais maduros do diretor Felipe Iesbick. Na trama, um casal (Martha Brito, Tom Peres) em crise acaba encontrando um denominador comum quando se veem em meio a uma fuga de prisioneiros. Martha Brito é destaque no quesito atuação, mas o ponto que mais chama a atenção é a música (assinada por Renan Franzen). Até número musical rola em meio às matanças, com bela performance de Renata de Lélis, nos deixando claro que não estamos em território conhecido. A homenagem a João França ao final, contumaz colaborador de Iesbick, é digna de nota.

Love do Amor, de Fabrício Koltermann

Love do Amor parece o trailer de uma futura atração – atração essa que gostaríamos de conferir. Toca em assuntos importantes e tem em seu protagonista um verdadeiro achado na figura de Senna Jr., um daqueles radialistas das antigas, de voz empostada e pronto para conquistar suas ouvintes com suas músicas românticas. O problema é que a dona da rádio não sabia que o seu novo locutor seria um homem negro e faz questão de demiti-lo, não sem antes atrapalhar a sua vida como pode. O curta não é muito sutil, mas deixa seu recado. Senna Jr. nos conquista, não tanto pelo seu talento como ator, mas pelo carisma que transborda da tela.

Isso me Faz Pensar, de Hopi Chapman

Isso Me Faz Pensar poderia ser um longa-metragem. Com direção de Hopi Chapman, o curta documental faz um raio x da cultura hip hop de Porto Alegre, colocando o foco em alguns personagens que muito fazem para ela acontecer. Temos Negra Jaque, Julinho Oliveira, Rael Real, MC Pablo, entre outros, que surgem mostrando um pouco da sua trajetória. Chapman capricha nos grafismos e costura bem a narrativa, apresentando ao espectador as feiras livres, as batalhas de slam e os shows. Claro que o olhar vai além da arte, com discussões a respeito da falta de oportunidades e da luta pela igualdade, seja racial ou de gênero. Fará você pensar, certamente. 

Brecha, de Helena Thofehrn Lessa

Quatro homens trabalham em uma obra, pegam tijolos, viram a massa, constroem um muro. A música começa a tocar e o que parecia um local de obras se transforma em um palco para que o quarteto dance e faça performances com os materiais do cenário. A música de Kika Simone invade e dá o ritmo para este curta/vídeo arte dirigido por Helena Thofehrn Lessa, que bebe na fonte de 2001: Uma Odisseia no Espaço (1967), de Stanley Kubrick, ao mostrar a evolução por que passam aqueles homens. A direção de arte é interessante, assinada por Ludmila Coutinho, trazendo uma visível dicotomia entre os figurinos dos rapazes e o ambiente em que estão.

Rufus, de Eduardo Reis

A batina não parece combinar com os tênis Adidas. Muito menos com a música rap que o padre Rufus (Álvaro RosaCosta) tanto gosta de ouvir. Ele tenta esconder de início, do faz tudo da igreja (Cássio Nascimento) e da beata (Áurea Baptista), mas a força da música se mostra mais impactante. E se o padre começasse a fazer rap ele mesmo? Em uma época em que temos padres com milhares de seguidores no instagram e que já tivemos outro que foi campeão de vendas de discos no Brasil, por que Rufus não poderia quebrar essa barreira? O diretor e roteirista Eduardo Reis aponta para essa virada, com ótima performance de RosaCosta.

Hora Feliz, de Alex Sernambi

Me dá teu CPF que te faço um PIX”. Uma frase bastante usual nos dias de hoje, mas que surge como um alienígena no curta de animação Hora Feliz. Talvez uma das frases mais nonsense ouvidas nesta mostra gaúcha. Isso por conta de tudo o que o cineasta Alex Sernambi constrói até ali. Com colagens riquíssimas, com a cultura chinesa em primeiro plano, o diretor mostra uma taxidermista que se encanta pela música de um violeiro mascarado. Uma viagem curiosíssima, com trilha sonora esquisita (no bom sentido), Hora Feliz é daqueles curtas em que você termina e pensa: “O que eu acabei de assistir?” E vai para a segunda sessão para buscar o que perdeu.

Trem do Tempo, de Vitor Rezende Mendonça

Trem do Tempo, de Vitor Rezende Mendonça, foi um trabalho para a disciplina de Animação 2D que ele produziu na UFPEL e deve ser visto como é: um experimento para a faculdade. Existe grande crueza no traço e na movimentação dos personagens, o que não seria necessariamente um problema caso o roteiro tivesse mais tempo para se desenvolver. Na história, uma mãe e o seu filho se preparam para uma viagem, mas a hiperatividade da criança pode fazer com que os dois percam a hora. O trem, claro, serve como uma metáfora para o tempo – perdido ou não. Necessitava de maior polimento para um festival, mas deve ter gerado uma boa nota para o curso. 

Foto no post: Agência PressPhoto