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Publicado por em mar 1, 2020 em Artigos |

Memórias do subsolo: relatos de naufrágio e descenso

Por Carla Oliveira

Em uma mostra de cinema coreano apresentada no Espaço Nimas, em Lisboa, no ano de 2017, o crítico de cinema Jung Sung-il explicou à plateia que uma das essências do cinema e da cultura coreana é a expressão do sentimento han. Controverso e dito de difícil entendimento pelos ocidentais, o han pode ser definido como uma comoção, uma vivência individual ou coletiva de humilhação, dor, frustração, luto e ressentimento, em uma intensidade tão profunda, que poderia até justificar um ato de vingança. Jung Sung-il debatia com o público o filme Para além do tempo (Chun nyun hack, 2007), de Im Kwon-taek, diretor de mais de uma centena de filmes, considerado o pai do cinema coreano contemporâneo. Nessa obra, era apresentado o pansori, apregoado como o som do han, uma tradição musical narrativa coreana, originada no século XVII, que atingiu seu auge no século XIX, quando passou a ser performada por pessoas em condições econômicas e sociais desfavoráveis. No século XX, quando o centenário cinema coreano nasceu e, com dificuldades, se desenvolveu, as experiências de injustiça e sofrimento foram muitas: a Coreia foi invadida e ocupada pelos japoneses desde 1910 até o fim da Segunda Guerra, passou por uma divisão e guerra civil no contexto da Guerra Fria e atravessou longos períodos sob censura e governo militar autoritário. Nos tempos atuais, a opressão e a humilhação na Coreia do Sul provêm, principalmente, da divisão e da desigualdade de classes, do desemprego e da falta de oportunidades destinadas ao jovens.

O hospedeiro (Gwoemul, 2006) e Mother – a busca pela verdade (Madeo, 2009) já haviam sido apontados como filmes de Bong Joon-ho onde o sentimento han se faz presente. Parasita (Gisaengchung, 2019) também é fundamentado na humilhação, sendo aqui de uma família pela outra, ou de uma classe social pela outra. Apresentadas de forma espelhadas, vemos o quanto as diferenças de condições e oportunidades entre as famílias são muito mais destoantes do que seus desejos e ambições. Bong Joon-ho é um grande destaque dentre os talentosos cineastas da segunda era de ouro do cinema coreano, emergida a partir da década de 1990 e início dos anos 2000, quando o governo decidiu incentivar o desenvolvimento da indústria audiovisual. A primeira era de ouro havia sido nos anos 50, e dela fez parte Kim Ki-young, cineasta apontado por Bong Joon-ho como uma grande referência, autor do emblemático Hanyo, a empregada (Hanyo, 1960), filme onde a casa e sua escada são personagens tão importantes quanto a família burguesa que a habita e a empregada que transforma o destino de todos em noites de tempestade. Há exagero, violência e ausência de personagens principais com virtudes morais inatacáveis na obra de Kim Ki-young, assim como no último e laureado filme de Bong Joon-ho, vencedor da Palma de Ouro em Cannes e de quatro Óscares.

A família protagonista de Parasita é a Kim, habitante de um semi-porão, abaixo do nível da rua, com a qual se relaciona através de uma janela gradeada, que permite a entrada de luz solar. Em um ambiente feio, atulhado de objetos e sem sinal de wi-fi, vivem o pai (desempregado, acabrunhado), a mãe (uma mulher forte, que, muitas vezes, tomará iniciativa nos confrontos corporais ao longo do filme) e seus jovens filhos: a menina Ki-jung, com inclinações artísticas (sabe falsificar documentos, imitar vozes), e o menino Ki-woo, que sonha em cursar uma faculdade. Este tem um amigo em melhores condições financeiras, que o visita e presenteia sua família com uma pedra, uma promessa de riqueza. Logo após, conta que está viajando para o exterior e que tem vontade de indicar Ki-woo para ser o tutor de inglês de uma menina rica, trabalho com o qual se ocupava até o momento. A família Kim, então, faz planos. Ela ainda se nutre de desejos e ambições. De forma audaz, infiltra-se na mansão da família da Park: Kim-woo como tutor de inglês da menina Da-hye, Kim-jung como arteterapeuta do pequeno Da-song, o pai como motorista e a mãe, governanta.   

Em contraste com a família Kim, a família Park vive em uma linda casa modernista, envidraçada, com vários níveis e um jardim ensolarado. A mãe é uma mulher um tanto ingênua e fútil que se ocupa dos filhos, dos cães e da contratação dos funcionários. Os filhos são a adolescente Da-hye, e Da-song, menino de 10 anos,  tido, por sua mãe, como possível gênio das artes e excêntrico. Ele brinca que é um índio americano. A mãe, que adora tudo o que vem dos Estados Unidos, esclarece: “é um índio bom”. O pai é um executivo que gosta de funcionários que sabem que não devem cruzar a linha. Tal linha, no entanto, será cruzada. Os filhos quebram limites de alguma maneira: Da-hye se envolve romanticamente com Ki-woo, que entende que nunca pertencerá àquele universo, e Da-song troca mensagens com a antiga governanta, a que foi demitida devido a um engenhoso golpe da família Kim. Esse contato permite o retorno clandestino da ex-funcionária à mansão dos Park em uma noite de tempestade, quando eles se encontravam ausentes. Dá-se, então, a grande reviravolta do filme: a família Kim descobre que a verticalidade da casa é maior do que eles imaginavam. No subterrâneo da mansão dos Park, em um antigo bunker, vive, há quatro anos, o marido da antiga governanta.

O exilado do subsolo vive no escuro, sem janelas, economizando eletricidade. Falido, coberto de dívidas e sem qualquer amparo social, ele se aferra ao seu mundo perdido, onde existem muitos livros, e ao seu amor pela esposa. Mantém um único e estranho rito de saudar diariamente seu amo, o dono da mansão (desconhecedor do mundo das sombras), iluminando-o enquanto ele chega em casa e lhe enviando mensagens de saudação e respeito em Código Morse. Foi visto por Da-song uma única vez, à noite, quando subiu furtivamente à cozinha em busca de comida. O menino pensou ter visto um fantasma, o que a mãe achou de bom augúrio: assombrações na casa trazem riqueza à família. 

O homem do subsolo é um espectro, mas também tem um corpo, que cheira muito mal. Em Parasita, cada família tem seu odor peculiar. O pai da família Kim será particularmente humilhado pelas referências e expressões de asco do casal Park ao seu cheiro. Constantes insultos o levarão a um ato impetuoso de desforra, no dia seguinte a uma tempestade que havia deixado a sua residência inundada, enquanto a família Park pouco foi afetada pelas águas. É nesse momento que ele naufraga ao subsolo, ocupando o espaço do seu antigo dono. Os sonhos de ascensão e de bem viver para sua família são fugazes. Dor, violência, morte, separação, frustração, fome e escuridão compõem o fardo da família Kim. Bong Joon-ho transforma Ki-woo e seu pai, quando já se encontram definitivamente quebrados, em narradores. Eles tentam se comunicar, mas não há voz, carta ou mensagem que possa levar consolo a quem está no subsolo. 

Parasita é um filme envolvente, tecnicamente brilhante e com intenções políticas claras. Muitos se perguntam porque a família Kim não se une ao casal formado pela ex-governanta e seu marido contra a família Park, como se poderia esperar em um filme otimista e didático sobre a luta de classes. Empatia entre eles existe e a família Kim se vê em meio a escrúpulos, culpa, medo e breves alentos de esperança. Mas, depois de sofrer tanto devido a desemprego e carências básicas, os desfavorecidos se vêem em posição de competir entre si e bajular quem vive às custas de seus esforços e misérias. E não há nem tempo para a aproximação e união entre as famílias mais pobres. Em um sistema moribundo, Bong Joon-ho mostra à plateia quem são os parasitas e os corpos em constante sofrimento.