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Publicado por em set 3, 2018 em Artigos, Destaque |

Dois bons longas em Gramado 2018

por Sergio Alpendre, integrante do Júri da Crítica no 46º Festival de Cinema de Gramado, especial para o site da ACCIRS

Recorte é recorte. Se é pessoal, não tem como ser totalmente objetivo. Algo do gosto de cada curador estará presente, compondo uma seleção em que é praticamente impossível ter só filmes bons, segundo o olhar de um outro. Tendo um bom, entre oito, dez, doze ou quinze, já vale a viagem. Pois os filmes bons são raros, sempre foram, e um festival que acompanha um cenário contemporâneo fatalmente exibirá mais filmes ruins do que bons. É inevitável. E o 46º Festival de Gramado nos brindou com dois bons longas brasileiros (um deles, na verdade, muito bom). Dois belos e distintos exemplos do que podemos fazer
de melhor.

Um é trôpego, anárquico, crítico e autocrítico, sarcástico e sujo. O outro é redondinho, mas com arestas muito bem controladas e atenção rara aos detalhes do cotidiano. Um é dirigido por um cineasta já bem conhecido do público, e mistura animação com entrevistas e imagens de arquivo de uma maneira inventiva. Outro é assinado por um cineasta mais jovem, que segue muito bem a trilha de Cassavetes e conta com uma parceira de cena à altura de Gena Rowlands. Cidade dos Piratas e Benzinho, cada qual à sua maneira, engrandeceram o festival e mostraram que no cinema brasileiro há espaço também para fugas das fórmulas que o regem.

Cidade dos Piratas é mais irregular. Sua liberdade, por vezes, é também uma prisão. Como ser tão livre sem responder por algumas bobagens, piadas que não funcionam ou cenas desconectadas de um todo que não tem como existir? A liberdade é sua força e seu limite, o trunfo e o risco. Mas é preferível, mil vezes, arriscar-se assim do que pensar numa fórmula de sucesso que assegure a narrativa mas engesse a invenção. Otto Guerra faz seu Oito e 1/2, ao mesmo tempo em que homenageia a genialidade de Laerte. Pensa a animação em contato com o documentário de colagens. Pensa, enfim, o que já vale um bocado.

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Benzinho é uma raridade no cinema brasileiro. Um filme de dramaturgia, de pequenos atos, de grandes atores e de pequenos grandes atores. De estrelas globais que aceitam servir de escada para atrizes e atores mais, digamos, autorais. Gustavo Pizzi, o jovem diretor, sabe exatamente quanto deve durar um plano. Seus cortes, com raras e barulhentas exceções (é o ônus de se fazer uma obra que busca o equilíbrio e a concisão), têm a precisão de um mestre. Poucas vezes vemos tamanha segurança na arte de narrar uma história simples, de pequenos percalços, pequenos sonhos e pequenos traumas, atingindo grandes emoções e imensa poesia. Pensar em Benzinho é pensar também na tuba, na escada colada à janela, nos sonhos de um empreendedor fracassado, na esperança de uma irmã maltratada pelo marido, nas brincadeiras entre primos, nas brigas de quem se ama e se entende muito bem.

Nem se pode dizer que seja esse o caminho, o de Benzinho. Talvez não seja. Porque não é fácil narrar histórias simples com equilíbrio e precisão. A limpeza do estilo não é especialidade do artista brasileiro e as exceções confirmam a regra. Quase sempre que tentamos, chegamos a uma dramaturgia televisiva que cai bem na TV, em capítulos, dentro de um esquema que favorece o folhetim. Raramente chegamos ao melodrama cinematográfico. A invenção de Otto Guerra tem mais a ver conosco. Benzinho é um belíssimo exemplo de boa dramaturgia, com a elegância de um clássico e a pujança de um moderno. Cidade dos Piratas, com seu caos estimulante, poderia ser mais constante. Pois essa pedra bruta temos em abundância em nossa natureza artística. Basta querer alcançá- la. O diamante de Pizzi é mais difícil de ser lapidado. É a pequena poesia de adoráveis fracassados, gente como a gente, que acompanhamos com prazer do início ao fim.