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Publicado por em out 5, 2020 em Artigos |

Documentário acompanha sírios refugiados no Uruguai

Por Adriana Androvandi, especial para o site da Accirs.

Um dos destaques do 48ª edição do Festival de Cinema de Gramado foi o documentário El Gran viaje al país pequeño, dirigido por Mariana Viñoles (Uruguai, 2019). Competidor na categoria de filmes estrangeiros, saiu premiado com quatro kikitos: Melhor Direção, Prêmio Especial do Júri, Melhor Filme pelo Júri Popular e Júri da Crítica.

Com a conquista de ter agradado tanto ao júri popular quanto ao da crítica (organizado pela ACCIRS), este longa-metragem acompanha duas famílias sírias que são encontradas pela cineasta em um campo de refugiados, uma com um casal mais jovem e a outra com um casal mais velho. As famílias entram em um programa que oferece asilo no Uruguai e embarcam na jornada. Na chegada ao “país pequeno”, o presidente José Mujica está no grupo que os recebe em solo e dá um importante conselho para os imigrantes: que eles procurem se integrar no país e não apenas pensar em voltar para o seu.

El Gran viaje al país pequeño, dirigido por Mariana Viñoles

O começo de uma vida nova em um país sobre o qual o grupo não sabia nada certamente seria difícil, não se esperaria uma experiência diferente, e este é o ponto de partida do filme. O programa humanitário auxiliou com aulas de espanhol, entre outras atividades. O casal mais jovem chegou com a mulher grávida e já tinha dois filhos pequenos. A mulher tem o terceiro filho em solo uruguaio, mas alguma coisa no procedimento do parto não agradou ao casal, que preferiu ficar um tempo sem falar com a diretora. Por sua vez, o patriarca mais velho reclama que não consegue ter e negociar animais, que quer trabalhar e não consegue, por isso prefere voltar para a Síria, mesmo com a guerra. Aos poucos se conclui que ele é um camponês que está inquieto por não conseguir fazer o seu trabalho. Portanto, o Uruguai não está agradando, o que é um ponto de ruptura da narrativa.

A certa altura, o desgosto aumenta e os sírios reclamam que foram enganados, que o governo uruguaio só daria casa por dois anos e depois teriam de se virar sozinhos. Um protesto em praça pública é feito e recebe cobertura da imprensa. Um repórter pergunta se os reclamantes acham que ganharão atenção enquanto milhares de refugiados morrem afogados no mar Mediterrâneo tentando chegar à Europa em barcos improvisados. Um sírio retruca, outro diz que um membro da sua família foi vítima de assalto, que se soubessem que seria assim não teriam ido ao Uruguai, entre outros lamentos. Neste ponto, o espectador fica um tanto atônito. Os sírios prefeririam estar levando bombas na cabeça em seu país do que estar no pacato Uruguai? Em um primeiro momento, parecem mal-agradecidos.

Mas esta questão, por fim, acaba elevando a tensão no longa-metragem e introduz várias questões para reflexão, algumas comentadas pela voz da própria diretora. Ela, que até então estava como observadora (os protagonistas conversam com ela ao olhar para a câmera, mas sem que sua figura aparecesse), admite que os uruguaios consideram seu país um pequeno paraíso pela tranquilidade. Seriam os uruguaios muito orgulhosos de um país não tão maravilhoso assim? Ou a inadaptação pode ser a reação ao exílio forçado, situação de milhares de pessoas devido a guerras e conflitos? Contrastes culturais marcam essa experiência e isso enriquece o filme. Entre eles está a religião. Os sírios que chegam são muçulmanos e são minoria no país, não tendo uma mesquita para se reunir. Hábitos, linguagem, leis, tudo é diferente. Algumas pessoas vão lhes ajudando e aconselhando a ter paciência ao longo da história, como um senhor, dono de uma loja, que imigrou ao país anos atrás. Desta forma, entre lamúrias e pequenas conquistas, os sírios vão se ajustando.

Após um tempo, o documentário chega a uma propriedade rural, onde o sírio camponês se instalou com a família e pode finalmente criar animais. Ele parece mais calmo, mas ainda reclama de algumas questões econômicas no Uruguai e diz que na Síria é melhor. Em certo momento, sentado em uma parte externa da casa, ele canta em sua língua para sua amada Síria. Nesta cena singela e humana, entendemos que o apego à terra natal é uma emoção profunda, que envolve o amor aos ancestrais, aos costumes, a tudo o que o país representa. A questão do etnocentrismo pode entrar como uma explicação antropológica aqui. A sensação que temos é que esse lamento pode nunca ter fim enquanto o camponês viver.

Enquanto os mais velhos choram a pátria perdida, os mais jovens têm mais facilidade na adaptação. A família com o casal mais jovem vai morar em um apartamento em um ambiente urbano, com as crianças indo à escola e o marido tendo um trabalho com o qual consegue sustentar a família. Bastante conectados pela internet, eles mantêm contato com familiares e aos poucos parece que se dão conta de que a situação na Síria está cada vez mais crítica.

Uma questão que salta aos olhos é a da esposa do casal jovem com os três filhos. Ela chega ao final do filme com 23/24 anos. No início assustada, ela vai parecendo mais solta e alegre ao longo do filme. Ela e as filhas do casal mais velho amadurecem em idade e vão mudando a forma de se vestir, menos rígida, usando saias mais curtas, mas sem nunca deixar de usar o véu. Uma até pinta o cabelo de loiro. Enfim, elas vão sendo seduzidas pelas pequenas vaidades oferecidas pelo Ocidente. Em um depoimento, a jovem mãe conta que, num certo dia, estava ao telefone com a sua mãe, que está na Síria, após levar as crianças na escola. Quando sua mãe soube que a filha estava caminhando na rua sozinha, questionou-a sobre isso. A jovem contou que ali isso é comum, que o marido foi trabalhar e ela levava as crianças ao colégio e se sente muito bem por isso. Ela pretende trabalhar no futuro. Este documentário, portanto, além de fazer um registro dessa imigração e do contraste de culturas, acaba por observar uma sensação de leveza e despertar das mulheres que passam a viver em regimes menos opressores. Mesmo sem quebrar grandes regras ou tabus, elas querem apenas uma vida melhor e se sentem bem pela liberdade de ir e vir sem serem importunadas. O olhar delicado da diretora deixa essa questão feminina emergir e esse é um dos belos pontos do filme, que ela conduz com respeito e empatia com seus entrevistados, ainda que várias outras questões possam ser material para reflexões ao longo do documentário.