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Publicado por em mar 25, 2014 em Artigos |

Crime sem castigo (Match Point, 2005)

por Enéas de Souza

02O que resvala, o que inquieta no filme Match Point, de Woody Allen, é o ardil que o cinema tem ao narrar um problema subjetivo, mostrando imagens que aparecem como se elas tivessem um caráter objetivo. A imagem mental surge como se fosse imagem do mundo. E, ao mesmo tempo, essas falsas imagens objetivas acabam por interrogar a subjetividade do espectador. Logo, a dialética do subjetivo e do objetivo está inscrita na narração do personagem central, o arrivista Chris Wilton. Fica bem clara a astúcia do roteirista e do cineasta: a história não é contada na terceira pessoa, mas sim na primeira. É como Don Casmurro de Machado de Assis. E a força da ambigüidade do cinema faz o outro lado da magia, nos captura.

Este relato, de fato, tem tudo para nos atingir (e nos atinge), porque é a narrativa de um ganho que, em verdade, é uma perda. E a perda é o substrato básico desta intriga, o seu tesouro moral e psíquico. Propõe o diretor que os fatos dramáticos girem em torno do gesto amadurecido do assassinar e que o deslizamento subjetivo/objetivo se apóie na dupla que funda o filme, a relação perda/crime. O cenário onde se organiza a intriga contém o esplendor de Londres que, emergindo como o lado objetivo, nos deleita e nos comove, já que o lado subjetivo, subversivo, nos come o fígado, se aproxima de nós como uma garra maldita, um foco de pressão. E como não se trata de um filme de tese, mas de uma obra de ficção, a sutil substância deste conhaque nos embriaga e nos instiga, nos encanta e nos derruba. E o espectador com uma leve identificação com Chris Wilton, o jovem simpático do início, é conduzido à trilha da violência, e percebe que a flor que brota, o casamento com Chloe, apodrece no meio da cintilação de Londres. E desta flor nasce a consciência do desastre – para que ela viva, é preciso que Nola Rice morra.

O visível, o que é filmado, se baseia na ideologia do personagem, um tenista, o melhor exemplo de um gladiador contemporâneo, de alguém que anima a elite culta e endinheirada de nossa época, alguém que desiste do circuito do tênis, pelo desejo oculto, porém não tão clandestino de assumir um lugar nessa elite. Isto quer dizer, que o que ele almeja é fazer “uma contribuição” (“a contribution”) para a sociedade, obviamente para esta classe. E vejamos a bela manobra do roteiro: esta classe, com suas práticas, é a que está na noutra cena, a que está em “off”, a que está fora do filme. Porque o que vemos, o que o narrador nos apresenta, é apenas uma família, uma normal e idealizada família da alta classe britânica. Vista, é claro, no mais pleno gozo do que se poderia chamar o consumo estético da vida.

Invisíveis são os meandros dos negócios e as articulações sociais da vida, as formas de poder e de mando econômico, a rede de controle social – a polícia, por exemplo – e os subprodutos do mundo das grandes empresas. Atravessa o roteiro uma vereda de sedução que deixa o lado invisível da história no forno, cozinhando, porque se aparecesse, teríamos a instalação do discurso político. E o que Woody Allen tenta fazer é outra coisa, tenta filmar a singularidade e a concretude da vida de um personagem. Mas, não nos enganemos. O invisível está lá, uma semente crescendo, já uma árvore, uma força tornando-se presente, atuante, torcendo os cordéis do destino. O visível é o engano contado por Chris Wilton que o comprou como verdade. Retirada a casca, o núcleo se apresenta, caroço engasgando o criminoso. Daí o belíssimo final. Um movimento de câmera, trabalhando a família na chegada ao apartamento, que culmina num grande plano de Chris Wilton. Nele, o personagem está sufocado pelo enquadramento que aperta seu rosto, aprisionado, definitivamente, pela brutalidade do que aconteceu, o gesto agudo e tremendamente ousado do assassinato de Nola Rice.

Neste tema, o filme fustiga com bastante força, porque embora o visível da narração nos mostre que foi a sorte (“luck”) que fez com que o crime não fosse solucionado, o que o invisível nos traz é que o poder insubstituível da família e a ideologia do personagem não permitem ver que o que presenciamos foi um claro caso de impunidade, uma forma “regulada” de acaso, onde os que perdem, ganham. Sim, porque a bola do jogo caiu do lado de Chris, segundo a metáfora esportiva do filme. Teoricamente, no tênis, esta bola seria contra o personagem, mas, na vida real, ele ganhou. Dizendo mais profundamente, ele ganhou e perdeu. Ganhou a impunidade e perdeu o desejo. Perdeu o amor e ganhou a desgraça. Perdeu a subjetividade e perdeu a liberdade de ser. Nesse sistema, todo vencedor é igualmente um perdedor. Mas, quem nunca perdeu e ganhou sempre, como se fosse um deus ex-machina, é aquela família, a família Hewett. Ao absorver um talento como Chris, ganhou um proveitoso executivo (!) (embora perdedor nos negócios particulares). E ganhou alguém que fez (e poderá fazer de novo) o trabalho sujo, o trabalho indispensável de seleção, o de eliminar a presença de outra arrivista, uma mulher como Nola Rice.

Desde o primeiro encontro pode-se ver a superioridade de Chris sobre ela. Na partida de tênis de mesa ele responde ao saque de Nola com uma violência inaudita. E por isso diz: “sou competitivo (…) e agressivo”. Desde esse momento, Nola Rice está morta, morta social e subjetivamente. Mas o grande trabalho de Chris não é apenas derrotar competidores. Este é o bilhete de entrada. O que ele faz de supremo é assegurar a reprodução da família em pauta. Porque isto fica claro. A família da alta classe se reproduz basicamente por suas próprias forças: o casamento de Tom e Silvia. Mas, como uma família moderna, precisa de forças ascendentes, ousadas, que renovem o seu mundo como o casamento de Chloe e Chris. Faz parte do contrato, de forma voluntária e não-explícita, mãos que usem uma espingarda para definir o contorno das relações sociais, mãos que não tenham objeções ao limite do crime. Atingimos a visualidade da combinação do visível e do invisível.

Mas há um ponto cego nesta relação, uma espécie de mancha, de anamorfose da sociedade, que é o crime, o assassinato. Ele se torna o elo de transmissão dos dois pólos. E podemos dizer que intensa e brilhante é a construção da cena do crime. Ela se desenvolve a partir do narrador, e, portanto, não só mostra a inteligência do personagem, como também eficácia de sua execução. Mas, talvez, o que seja cinematograficamente magistral, além da descrição dos passos e dos movimentos da figura dramática, seja o impacto do crime no narrador. Cenários, cor, luz, ação e gestos preenchem o efeito fantástico do episódio, quando Chris mata a vizinha de Nola, como parte do disfarce de seu plano. A esta altura, a cena é filmada do corredor e vemos o ex-tenista com a espingarda atenta. Temos um corte para o rosto-surpresa da mulher e, logo em seguida, o plano retorna para o corredor. E Chris, decidido, dispara a arma. O som eclode enorme, amplo e vasto, quase como o som de Sam Peckimpah em Meu Ódio Será Tua Herança. Chegamos ao momento do fulgor. O que se vê não é a queda do corpo da mulher, mas sim o de Chris Wilton. E Woody Allen num só plano nos diz duas coisas distintas daquilo que filma. Primeiro, a caída do homem mostra, na verdade, elipticamente, a queda da vizinha e a sua morte. E, em segundo lugar, a cena assinala a destruição irremediável do assassino, ética e moralmente.

Mas há um efeito múltiplo, ainda. Depois da morte da vizinha, temos o tiro em Nola. Esta seqüência marca o desdobramento do tempo trágico. Simbolicamente, Chris Wilton elimina toda a linhagem do afeto: mãe, mulher e filho. Acaba com a genealogia sem futuro, aquela da classe média, para encaminhar o nascimento de Terence, o filho do casamento com Chloe, o bem nascido do capitalismo. Na cena final, o recém chegado aparece no “moisés”, posto no sofá do apartamento como um Jesus na manjedoura. A reprodução da família Hewett está consumada e a relação Chris-Nola desaparece para sempre. O pôr lado a lado o ato criminoso e a família de Chloe consolida a idéia funcional da reprodução familiar, mas não oculta a verdadeira mancha, que sai ilesa do filme, a impunidade do personagem. Com isso o filme nos leva à inquietude, ao choque e à estupefação. (Não se pode esquecer que no pano de fundo de tudo isso, no fora do filme, funcionando como inconsciente político, está a globalização, a guerra do Iraque, o terrorismo de Estado ou de grupos, etc., que omitidos, também fazem parte da estranha invisibilidade do filme).

Da história à direção
Agora, mudamos para falar dos aspectos da concepção propriamente cinematográfica que esta história possibilita. Como toda obra, o primeiro ato de criação é a idéia do filme, que se materializa no roteiro, ante-sala da direção. Mas uma história só existe com a escolha dos atores, o que concretiza qualitativamente um ato fundamental do diretor. Escolher um ator ou uma atriz é optar por um rosto com suas linhas e sua geografia, por uns olhos com as suas cores e as suas modulações. E o movimento do olhar alcança, por sua vez, realce pictórico no espaço imaginário da face e na sua combinação poética com cabelos, corpo e gestos. O resultado de conjunto caracteriza toda uma concepção do homem e da mulher. No prolongamento marcante desta figura desenhada, brilha o acento nas extensões de cada personagem: roupas, objetos pessoais, casa, cidade etc., que completam a natureza plástica das figuras dramáticas, definindo assim a sua relação com o mundo.

Estamos, neste ponto, traçando um caminho profundamente decisivo e inarredável. Vejam Chris Wilton (Jonathan Rhys Meyers): rosto moreno, padrão masculino e moderno de beleza, olhos profundamente melancólicos. Aí se decide tudo: um cara vigoroso, forte, entroncado, um tenista, mas com a face mergulhada já na sua dor e na sua nostalgia que vai se expressar no filme e na cena final. Quanto a Nola Rice, fantásticamente bem escolhida, a atriz é Scarlett Johanson. Olhos profundamente curiosos, tantas vezes aconchegantes, muito perguntadores e vivos, que acompanham lábios sensuais e um corpo sublinhado para o apelo de um possível ato amoroso. Suas roupas oscilam entre a pigmentação do sexo e a vulgaridade do cotidiano de uma mulher balconista, americana, sem grandes pretensões e de cultura insuficiente, quase banal, como a Judy de Kim Novak em Um Corpo que Cai, de Alfred Hitchcock.

Pois estes personagens, junto com integrantes da família, também esplendidamente escolhidos, entram no cenário da Londres estética: teatros, óperas, galerias, museus, bares, restaurantes, carros, e, sobretudo, no fascínio da riqueza dos ambientes externos e públicos como dos ambientes internos e privados. Nesse caso, a casa de campo, a casa da cidade, e mesmo os escritórios, desde o antigo ao moderno, tudo é local, tudo é habitat, para a família Heweet. E esse é o gênio de Woody Allen: filmar a cidade, filmar a atmosfera, filmar o deleite dos objetos e dos cenários. É a beleza apolínea da família da alta classe britânica. E se Dostoievsky dá a profundidade literária do sujeito, desde a maquinação até a tortura moral, a Grécia colabora tragicamente com a idéia de acaso e mesmo de crime (hybris). Só que, nesse filme, o que importa é o salto dialético de Allen, que saindo do quase presente (Dostoievsky) para o passado (a tragédia) pula para a contemporaneidade e a resolve numa perspectiva totalmente diferente das outras épocas: a impunidade criminosa e a abdicação da subjetividade.

Através do diálogo com a literatura, com a ópera, com o teatro, com o próprio cinema, com o romancista russo e com a Grécia, mas seguindo uma realidade anglo-americana, aponta a profunda crise de uma sociedade que sempre se quis libertária: a da morte do desejo. Woody Allen vai assim nessa direção até Londres, o berço histórico do império anglo-americano. E obtém como cineasta – e roteirista – o passo fundamental do clima do filme: revive o brilho de um passado ainda presente (a ópera citada entra nessa linha), para ressaltar, pela subjetividade deslumbrada, a sociedade do espetáculo, dotando de sublime a elite britânica. O cineasta filma como esta se vende, glamourizada, aos olhos de quem que quer subir, no caso o tenista irlandês. Essa observação nos transporta ao núcleo da sociedade presente. E aí Woody Allen se excede. Como é que um cineasta filma uma cidade tão extraordinariamente? Se já capturava o sabor de Nova York, ele nos traz, agora, uma Londres inigualável. Identifica a beleza da filmagem com a operação profunda que fez – e faz – o nosso mundo com suas cidades, transformando-as em espetáculos. Esta meditação se faz com brilho e crítica nos fotogramas do cineasta.

O cinema, pensa Manuel Oliveira, é tempo e espaço. Embora Deleuze fale do primeiro e Eric Rohmer defenda o segundo, Manuel de Oliveira tem razão. E Match Point nos traz, com vigor sutil, uma dialética frontal entre ambos. Para a nossa análise, vamos começar com o espaço do filme, que é o bem elaborado da construção de uma tensão entre os espaços embelezados, estéticos, refinados (desde o clube de tênis, os teatros, os restaurantes até a casa de campo) e os espaços da morte e da pobreza européia (que vão da casa de Nola Rice e do apartamento da vizinha ao apartamento de solteiro de Chris Wilton). Esta tensão se precipita para a beira do abismo, gravata do nada que está encravada como um jóia hostil, uma orquídea negra, no bojo do apartamento sobre o Tâmisa. Abre-se nele um espaço em queda mortal, quase um precipício, um pouco como A Janela Indiscreta de Hitchcock. O que contém a possível derrapada no vazio é o vidro espesso e transparente do janelão. Lembra o hotel de Tóquio de Encontros e Desencontros, de Sofia Coppola, trabalhado com outra finalidade.

De outro lado, o tempo é percebido pelo lado subjetivo, pois tudo se centra na dimensão narrativa do personagem principal. Ou seja, temos aqui a figura moderna do sujeito que busca contar a sua história, que tem a consciência envolvida numa alienação precisa: os valores e o modo de vida de uma família da sociedade londrina. Mas, cinematograficamente, o tema tem uma conexão complexa. Primeiro, porque temos um narrador, que se insere na história que conta. Segundo, porque há um artifício na imagem, é provocadoramente ambígua e contraditória, oscila entre objetividade e a subjetividade. Terceiro, porque Chris Wilton idealiza todo o contexto social e familiar no qual vai se inserir. E quarto, o tempo tem um sabor trágico, seja pelo assassinato, seja pelas conseqüências do ato. Sim, é claro, a tragédia é profundamente subjetiva, mas há nela uma operação anti-trágica, efetuada pela a família, ao menos aos olhos do audacioso arrivista. Esta recapitulação de fatores serve para destacar o mais contundente da dialética do tempo e do espaço em Woody Allen.

É que o espaço começa com a construção cinematográfica de lugar, de Londres, e que vem deles, do lugar e do espaço, o nascimento do tempo.

Um filme é roteiro, é história, é plano, é montagem, é ritmo que permite a infiltração da energia crítica desde o primeiro enquadramento até a cena final. E o cineasta nova-iorquino faz sua película com júbilo e destaque, sem panfleto e sem retórica preconceituosa, apenas com um personagem dispondo de uma ordem narrativa e nos relatando o pensamento em imagens desta história. Nisso, o filme nos olha na nossa subjetividade, nos leva a examinar nossos valores, nos convoca para um exame do sujeito e para o entendimento da sociedade. Ele nos exaspera ao limite, e nos joga contra a dupla face do mundo de hoje: a impunidade e o espetáculo, uma vez que, para os eleitos da família, não há mais crime e castigo.

Artigo publicado originalmente na revista Teorema – Crítica de Cinema, edição nº 9 (2006). Texto de crítico integrante da ACCIRS já publicado em outro veículo da imprensa e autorizado para publicação no site da associação.

Match Point
Direção: Woody Allen
Roteiro: Woody Allen
Com: Jonathan Rhys Meyers, Scarlett Johansson, Alexander Armstrong, Paul Kaye, Mathew Goode, Brian Kox, Penélope Wilton e Emily Mortimer
País de produção: Inglaterra/EUA/Luxemburgo
Ano de lançamento: 2005
Disponível em DVD no Brasil
Duração: 124 minutos