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Publicado por em jun 21, 2021 em Artigos, Críticas |

Cinema doble chapa é ohùn

por Ivonete Pinto

Além da Fronteira (Alexandre Mattos Meireles, 2021, 21’) pode ser lido por várias chaves. Provavelmente as mais diretas se concentrem na relação de um pai e de uma filha e nas relações “sanguíneas” dos povos de fronteira. Vinculado a estes temas, o filme igualmente aborda a crise econômica do ponto de vista de um operário da construção civil, na verdade um faz-tudo porque precisa viver se adaptando. Edmilson (Hilton Oliveira) perde a esposa (as circunstâncias da morte não são explicadas no filme) e precisa cuidar sozinho da filha Clara, de 11 anos (Clara Meireles). Ele perde também o emprego e não consegue sequer pagar o aluguel. A situação fica mais difícil porque usa como válvula de escape a bebida, que só piora a relação com a filha.

Ao mesmo tempo, graças às cobranças de Clara por uma mudança de atitude, decide ir embora. É logo ali, passando a fronteira de Jaguarão (RS) para Rio Branco (Uruguai), que os dois vão encontrar abrigo em uma família doble chapa. Arranja trabalho, uma casa, e a filha faz amizade com um garoto de sua idade para brincar.

Alimentado por  multiculturalistas como Aldyr Schlee e Vitor Ramil, nosso imaginário logo associa o Uruguai a um país especial, com um ex-presidente dos sonhos e algumas leis igualmente dos sonhos. Mas não é bem assim, porque o trabalho que Edmilson consegue é na construção civil – que paga pouco e é informal – , e o sofrimento do pai segue seu curso, exposto com delicadeza pela narrativa. Afinal, trata-se de um drama humanista que só quer dar um recado simples ligado ao amor filial e à rede de afetos que pode se criar na fronteira. Fronteira esta que o título do filme já anuncia que será ultrapassada.

O curta-metragem pode ter problemas quanto à performance de alguns atores não profissionais (às vezes identificados pela crítica como “não-atores”, o que é um equívoco pois todos que atuam, em qualquer tipo de filme, são atores). Esta fragilidade, no entanto, é compensada  pela montagem experiente de Cíntia Langie (que também assina a assistência de direção) e por situações em que a encenação de Alexandre Mattos (a mise-en-scène, em bom português) é bastante feliz, como as brincadeiras entre as duas crianças. Há ali momentos quase mágicos onde realmente acreditamos na interação daqueles personagens e, mais do que isto, estes momentos representam o próprio sentido de solidariedade multicultural entre fronteiras, uma ideia idílica de América Latina que o filme, otimistamente, quer passar. Aliás, o curta faz parte do projeto “Fronterizas”, integrado por curtas rodados em Santa Vitória do Palmar/Chuy (Milonga lejana), Jaguarão/Río Branco (Casa de Rio), Pelotas/Jaguarão/Rio Branco  (Além da Fronteira), Bagé (La Sociedad) e Livramento/Rivera (Peregrinus).  O projeto foi realizado com os recursos da Lei Aldir Blanc.

Para além dos temas já referidos, vale citar que o componente racial, embora não discursivo, está no DNA de Além da Fronteira. Mattos é produtor cultural negro, conhecido em Pelotas especialmente a partir de sua atividade como sócio da Moviola, produtora responsável por vários  filmes premiados, entre eles Marcovaldo (Cíntia Langie e Rafael Andreazza, 2010, 15’). Neste cinema de guerrilha praticado por contingência Brasil afora, Mattos interpretou o próprio Marcovaldo, dialogando com o universo dos operários. O filme pelotense, que circulou por diversos festivais brasileiros e estrangeiros, foi construído como ficção com pitadas de linguagem documental e registra 24 horas na vida de um coletor de lixo. Talvez aí tenha se desenvolvido o interesse de Mattos pela fabulação em torno de operários,  que tem no cinema brasileiro exemplares icônicos como Eles não usam black-tie (Leon Hirszman, 1981)  e Arábia (Affonso Uchôa, João Dumans, 1917).

A noção de dignidade que há nesta linhagem de filmes está presente em todos os elementos de Além da Fronteira, inclusive naquele em que Edmilson resiste à sedução do tráfico de drogas.

Além da Fronteira teve sua estreia no OHUN – Mostra de Cinema Negro de Pelotas, projeto que vem sendo capitaneado por estudantes negros da cidade e com apoio do curso de Cinema e Audiovisual da UFPel. Um evento militante, inquestionavelmente necessário em todas as épocas. No contexto político atual, revela-se imprescindível, de utilidade pública mesmo, pois se constitui como legado de um lugar histórico, berço do líder quilombola Manuel Padeiro, que já foi nome de festival de cinema. O Ohun de Pelotas (em ioruba, Óhun é além e Ohùn é voz) se candidata a ser inspiração para outros eventos, assinados por futuras gerações que deverão continuar no compromisso de valorizar vidas como a de Edmilson e sua filha Clara.