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Publicado por em ago 25, 2021 em Artigos |

“Carro Rei” e os santos motores

Por Pedro Butcher

O cinema fantástico sempre foi presente na produção brasileira, mas, recentemente, tem expandido sua presença com o surgimento de uma geração que alimenta enorme entusiasmo pelas possibilidades do formato. Nesse sentido, a presença de “Carro Rei” na competição do último Festival de Gramado, um dos mais tradicionais eventos de cinema do país, é especialmente notável – algo reforçado com a vitória do filme, vencedor de quatro Kikitos pelo júri oficial, incluindo o de melhor longa-metragem nacional.

O “rei” do título é um táxi velho que tem voz e alma para o jovem protagonista Uno (Luciano Pedro Jr). Foi nele que Uno nasceu (e por causa disso ganhou esse nome) e foi nele que sua mãe morreu, em um acidente estúpido. Com a ajuda de um tio mecânico (Matheus Nachtergaele), Uno recupera o táxi em ruínas (abandonado depois do acidente que matou sua mãe) e o transforma em uma criatura majestosa. Juntos, passam a liderar uma rebelião silenciosa (para os que não escutam os carros), em que a máquina promete salvar o mundo.

“Carro Rei” abre um campo de diálogo muito rico com uma longa tradição do cinema. Trens, carros e aviões são primos das câmeras e projetores, frutos dos imensos investimentos em tecnologia que marcaram a Segunda Revolução Industrial, os processos de urbanização e a modernidade. Já nos primeiros filmes, o fascínio pela máquina e pela velocidade do automóvel se fizeram presentes, e, ao longo da história do cinema, esse fascínio permaneceu. King Vidor, por exemplo, explorou como ninguém os tons metálicos e brilhantes das carrocerias recém-saídas das fábricas como um elemento estético em “An American Romance” (1944). Esse mesmo elemento é essencial também na concepção visual de “Christine” (1983), a adaptação de John Carpenter para o romance de terror de Stephen King, sobre um carro assassino. O metálico domina a tela de “Carro rei” a partir de determinado momento da trama, quando o carro com voz e espírito do título é recuperado e revela sua veia autoritária e fascista.

No campo da fascinação sensual pela máquina, o diálogo, ainda que mais discreto, é com o fascinante “Crash”, de David Cronenberg (1996), adaptação do livro de J.G. Ballard sobre um grupo de pessoas que só consegue sentir prazer sexual em carros em perigosa velocidade. Não há como esquecer, também, do epílogo de “Holy Motors”, de Leos Carax, em que carros estacionados travam um divertido diálogo (não por acaso, a tradução literal do título é “Santos Motores”).

Mas “Carro Rei” não é uma mera emulação desses filmes. Ao situar a história em Caruaru, no agreste Pernambucano, Renata Pinheiro faz um comentário certeiro sobre a modernidade tardia de um país periférico latino-americano, sem reduzir essa questão a uma mera subalternidade. Ao mesmo tempo, o filme não é pouco ambicioso em seus voos filosóficos. Pela voz delirante do tio de Uno, interpretado pelo sempre intenso e brilhante Matheus Nachtergaele, “Carro Rei” se permite voar nas discussões sobre a relação entre o homem e a técnica, reverberando sobretudo Martin Heidegger, um dos filósofos que mais pensaram sobre a questão, e para quem a tecnologia não era um mero instrumento ou ferramenta, mas uma forma de compreender (e apreender) o mundo. O filme reflete também sobre a mais atual das questões, não restrita somente ao Brasil: as origens e contornos da sanha autoritária e do desejo de morte da alteridade.

Fazendo justiça às suas origens como diretora de arte, Renata Pinheiro orquestra um universo visual de forte identidade e riqueza, em parceria, aqui, com a diretora de arte Karen Araújo e o fotógrafo Fernando Lockett. No roteiro, trabalha com seu parceiro de tantos outros filmes Sérgio Oliveira e com o sempre provocativo Leo Pyrata.

Situado na cidade de Caruaru, no interior de Pernambuco, “Carro-rei” pode ser lido como um comentário político sobre a modernidade tardia e subdesenvolvida que marca profundamente o Brasil, mas que busca fazer isso com um sentimento jovem, talvez pelo carisma de seu protagonista, o adolescente Uno, mas, também, pela sua vontade de filosofar, de voar longe, de descobrir o mundo para além das aparências, e também, de dançar.