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Publicado por em ago 19, 2020 em Artigos, Críticas |

“Barry Fritado” e o alienígena sul-africano bonzinho

Ivonete Pinto

Existem pelo menos duas grandes forças nos filmes fantásticos: a capacidade de transmissão de ideias através de metáforas e a liberdade  narrativa sem limites. Metáforas, por si só,  não dotam os filmes de qualidade, mas quando trazem recados importantes, funcionam de diversas formas na recepção do público, operando então funções políticas que não devemos negligenciar. George Romero e sua trilogia dos mortos  tem lugar garantido na história do cinema. Sua visão da Guerra Fria, da energia nuclear, do racismo ignóbil da sociedade norte-americana são exemplos dos temas contrabandeados no enredo de zumbis em sua obra prima A Noite dos Mortos Vivos (1968). Já o exemplo de liberdade narrativa pode estar  em Barry Fritado, exibido na 16ª edição do Fantaspoa ─ que premiou  Garry Green, o protagonista , como melhor ator ─, e igualmente exibido no festival virtual de Cannes em junho deste ano. 

Barry Fritado (Fried Barry,  Ryan Kruger, 2020), é a versão estendida de um despretensioso curta com o mesmo nome, mesmo ator,  rodado dois anos antes e disponível no YouTube. O longa,  indicado por cinéfilos experts em filmes de terror, tem ainda a seu favor a origem, a África do Sul, que nos deu Distrito 9 (Neill Blomkamp, 2009). Foi uma surpresa descobrir que a África de Nelson Mandela podia render uma obra de ficção científica tão inventiva ao falar de segregação racial e social. Distrito 9 também tem origem em um curta homônimo. Ou seja, altas expectativas com Barry.

Ator de cinema e TV na África do Sul, Ryan Kruger, nascido no Reino Unido, de pai africano, foi morar naquele país em 2008, onde construiu carreira de ator e mais tarde  se tornou um conhecido diretor de videoclips de bandas de heavy metal, o que aliás, tem tudo a ver com o longa. Kruger gosta de continuar atuando, e fez uma ponta em Barry Fritado.

Nos primeiros minutos do filme, temos violência doméstica, drogas, um protagonista execrável pela aparência e pelas atitudes,  muita droga, conversas fiadas estilo Tarantino, trucagens e imagem desfocada em cenas de viagens alucinógenas. O protagonista Barry lembra o ator Denis Lavant  de Holy Motors (Leos Carax, 2012)  na expressividade e porque, afinal, estamos diante de alguém de outro mundo. Barry  é abduzido por alienígenas e volta à terra com seu corpo, mas com a mente de um extraterrestre.

O que era o repugnante pai de família, vira alguém sensível. Ele volta para o mesmo submundo de onde saiu, repleto de drogados, e cai numa espiral de sexo e bizarrices inspiradas. A heroína (a da papoula, não a humana) sendo o salvo-conduto para muitas delas. Aqui, mais uma oportunidade para reforçarmos a primazia de um filme de gênero que tudo pode, cuja liberdade não precisa dar satisfações a qualquer verossimilhança, qualquer lógica. Com seu esperma preto como óleo vencido, Barry engravida uma prostituta  e ela  dá a luz, sem que tenha se passado um minuto inteiro do orgasmo  ao parto.

Loucuras psicodélicas, humor, violência, não eliminam a percepção de um filme problemático em seus propósitos morais, que condena os males que as drogas fazem à sociedade, ao mesmo tempo em que pinta a representação deste mal com grafismos sedutores.

Na mesma linha, porém sobre outro aspecto do filme, podemos torcer o nariz para um enredo careta que valorizava a família. Barry maltratava a esposa, ignorava o filho, mas volta da abdução renovado e sensível para o seio do lar. Pelo menos, ao final (quase spolier aqui) temos um triângulo amoroso que desconstrói a “mensagem família” e o filme torna a crescer no seu potencial de criatividade graças ao gênero que pressupõe iconoclastia. Para o prazer cinefílico, há citações evidentes, como o Tarantino de Cães de Aluguel e  quando Barry é internado em um sanatório. Lá, há uma revolta dos loucos que remete de imediato ao Um Estranho no Ninho, de Milos Forman (1976). Nas sequências do hospício à moda antiga, há solidariedade entre os doentes.

Ao fim e ao cabo, seria heresia colocar  Barry Fritado (o título em português em nada ajuda) ao lado de clássicos como o de Forman. Seu humor capenga e sua falta de domínio para construir um personagem mais denso, fazem dele um filme apenas ok. Então, que fique claro que não está “ao lado” de. A lembrança serve apenas para elevar o status do filme sul-africano, no  esforço de encontrar razões para vê-lo pois, afinal, passou em Cannes e foi selecionado para o Fantaspoa. A verdade é que se tivesse ficado como curta, o cinema não perderia nada especial.

E se pensarmos nos discursos que o filme faz sobre a mulher, não sobra muito o que defender. A esposa de Barry é maltratada,  reclama, mas antes mesmo dele virar bonzinho em seu coté  alienígena, ela já estava disposta a perdoá-lo como uma dama do século XVIII que dependia do marido para respirar. A prostituta cai de amores porque ele a engravidou (??). A tese é simples: homens são nojentos e mulheres são lesadas.  De que modo defender as personagens femininas do filme? Elas seriam seres superiores (por que são mães?), capazes de se apaixonar por alguém como Barry. Já ele, para ficar barato, diríamos que é um escroto até o último fio dos cabelos oleosos, e só ganha alguma redenção quando incorpora um extraterreste. Mas chega de adjetivos para ilustrar a figura. Poderíamos gastar o dicionário inteiro que faltariam palavras para descrever aquele ser. Ele encontra a redenção ─ ou regeneração ─ ao virar alienígena, e nesta mudança poderíamos enxergar um Raskolnikóv no final de “Crime de Castigo”.  Mas só na chave irônica, pois não se trata de um humano. A visão de mundo de Ryan Kruger, nesta comédia de horror, ou horror cômico, não nos deixa muito orgulhosos da raça humana. E quem disse que precisamos ser?

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