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Publicado por em ago 30, 2022 em Artigos, Críticas, Festival de Gramado |

Banquete no país da fome, por Adriana Androvandi

Cena de “Clube dos Anjos”. Crédito da imagem: Dezenove Som e Imagens, divulgação.

Na noite do sábado, 13 de agosto, foi exibido no Palácio dos Festivais Clube dos Anjos, em competição na categoria de longa-metragem brasileiro. Trata-se de uma adaptação do livro do gaúcho Luiz Fernando Verissimo, lançado em 1998. O livro fez parte da Coleção Plenos Pecados, uma série composta por sete livros de sete autores diferentes, cada um sobre um pecado capital. O de Verissimo aborda a gula. A sinopse anuncia que se verá uma confraria de velhos amigos, com laços de amizade remendados num nababesco banquete proporcionado por um misterioso cozinheiro. Após o jantar, um deles amanhece morto.

O filme começa com o personagem de Otávio Muller falando para uma câmera, se autogravando ao fazer uma confissão. Ele vai narrando a cronologia dos fatos e levantando suspeitas. O morto teria sido envenenado? E os demais, retornaram a um novo jantar?

“Clube dos Anjos” tem uma produção e atuações primorosas, mas nem todos embarcaram na proposta do longa, visto que o título não recebeu nenhum prêmio por parte do júri do Festival de Gramado 2022. Temas urgentes no Brasil atual arrebataram os jurados, como a sobrevivência de negros e indígenas, casos de abuso policial e a Amazônia em perigo.

Mas confesso que aquilo que vemos fora da tela no Festival muitas vezes influencia o nosso olhar. Ao subir ao palco para apresentar o filme, antes da projeção, a experiente produtora Sara Silveira, gaúcha radicada em São Paulo, fez questão de dizer que apresentava um novo talento. Essa aposta mereceu minha admiração, pois este é o longa-metragem de estreia de Angelo Defanti, diretor do Rio de Janeiro.

O cineasta ressaltou que o filme abordava o tema da comida e lamentou o fato de tantas pessoas estarem passando fome no Brasil, destacando o caso recente de um menino de 11 anos que telefonou para a polícia em Belo Horizonte pedindo ajuda porque ele e sua família estavam sem ter o que comer (*). Ressaltou que o filme que veríamos era sobre um grupo de “homens hediondos”. Neste momento, qualquer olhar crítico foi aguçado para ver até onde aqueles amigos iriam em busca da satisfação do paladar. Apesar do longa chegar agora aos festivais, Defanti revelou que o sonho de realizar o filme era antigo, com os direitos autorais obtidos desde 2009 e com aprovação do escritor.

Em cena, os sete amigos se reúnem mensalmente para apreciar os prazeres da boa mesa, até que um novo cozinheiro (Matheus Nachtergaele) é contratado. A interpretação contida do ator é admirável e se ele recebesse um Kikito de atuação coadjuvante não seria injusto.

O elenco está afinado e consegue reproduzir o clima de “clube do bolinha”. Otávio Muller concorria a Melhor Ator e apresentou uma atuação divertida, mas o júri preferiu apostar no talento do até então desconhecido Gabriel Knoxx (do Acre). Vale lembrar que Muller recebeu Kikito de Melhor Ator Coadjuvante por “Um Homem Só” no Festival de Gramado de 2015.

André Abujamra assina a trilha sonora. “Já fiz a trilha de 70 filmes. Nesse eu também quis atuar”, disse no debate. Ele é um dos comensais e sua figura, sempre com um chocolate na mão, lembra a de um eterno menino glutão e se mostrou uma escolha acertada da direção. Ao seu lado, estão Ângelo Antônio, Augusto Madeira, César Mello, Marco Ricca, Otavio Muller, Paulo Miklos e o ator português Antonio Capelo.

A sofisticação está presente não apenas na gastronomia, mas nas frases de “Rei Lear”, de Shakespeare, que são alternadas em alguns momentos. Como admitiu o diretor no debate, não há redenção para os personagens. Porque mesmo quando eles a buscam não deixam de serem falsos.

Muitas sequências poderiam descambar para um pastelão, mas Defanti soube dosar a comédia com o drama. O cinismo é presente todo o tempo e, se o espectador se deixar levar pela fina ironia do texto, pode se divertir.

(*) PAIM, Renato e ANDRÉ, Carlayle. Menino de 11 anos liga para a polícia na Grande BH e pede comida: ‘Estamos com fome’. G1, 2022. Disponível neste link  https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2022/08/03/menino-de-11-anos-liga-para-policia-na-grande-bh-pedindo-comida-estamos-com-fome.ghtml . Acesso em 29 agosto 2022.