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Publicado por em fev 3, 2019 em Artigos |

A opressão invisível em Arábia

Por Leonardo Bomfim, especial para o site da Accirs

O retrato da esquerda em crise, em filmes contemporâneos e de outros tempos, marcou várias sessões da já distante edição de 2017 do BAFICI, Festival Internacional de Cinema Independente de Buenos Aires. Naquele momento, alguns dias na Argentina, ao lado de pessoas de vários cantos da América Latina, deixaram bem claro: compartilhamos a mesma saúde dos doentes. E se as pessoas adoecem, por que os filmes não adoeceriam? Mas felizmente surgiram alguns sinais de vida entre tantos lamentos e narrativas desoladas (o homenageado foi Nanni Moretti, com direito a sessão histórica de Palombela Rossa, a obra-prima definitiva sobre a crise de identidade da esquerda no final dos anos 1980, momento que me parece decisivo ainda hoje para compreendermos os nossos fracassos).

A esperança nesse BAFICI curiosamente surgiu de dois países que não estão no mapa de qualquer expectativa positiva para o futuro num sentido social: China e Brasil. We the Workers e Arábia. As duas obras têm a petulância extremamente política de aventurar a possibilidade de um despertar e assinalam algo essencial, mas que parece um tanto fora de moda: a luta de classes, por mais que a gente queira problematizar as grandes bases do pensamento de esquerda, ainda é o nervo de tudo. Dos títulos menos conhecidos do festival, We the Workers (2017) foi certamente um dos mais comentados entre as sessões. Pudera: não é todo dia que a gente pode ver um documentário de 3 horas sobre a questão trabalhista na China.

O filme de Wenhai Huang é todo dedicado a um grupo sem fins lucrativos que assessora diariamente trabalhadores do sudeste do país. Acompanhamos, como nos filmes de Frederick Wiseman (mas sem o invejável sentido de organização narrativa deste), as longas reuniões, as tensões internas, os telefonemas em busca de operários desaparecidos, os encontros com trabalhadores, as viagens a diferentes cidades, tudo filmado num longo período de tempo, entre 2009 e 2015. O grande desafio do grupo, percebemos logo, é convencer os trabalhadores de que existem leis trabalhistas e que os empregadores devem respeitá-las. Reforçam, várias vezes, a importância da união, da formação de sindicatos, mas a desconfiança diante da possibilidade de qualquer direito é absoluta, assim como a submissão extrema a um poder invisível, profundamente internalizado nos homens. No Brasil, um espectador reacionário chamaria esse grupo de comunista. Na China, pelo que o filme indica, também. Se por um lado revela o medo constante do povo chinês, a base de qualquer sistema opressor, We the Workers marca uma posição política firme: é possível mudar, a união dos trabalhadores é um caminho necessário e viável na China atual. De alguma forma, essa perspectiva de saída complementa o horror apresentado em outro documentário chinês recente, Dinheiro Amargo (2016), de Wang Bing, o grande mestre do documentário contemporâneo. Com a paciência costumeira e a sensibilidade para encontrar histórias e personagens no ato da filmagem, Wang encara mais uma faceta do “crescimento econômico” da China, a migração interna para uma região que enriqueceu e o consequente vale tudo atrás do dinheiro. O pagamento vem em função da produtividade, não há salário ou contrato. Direitos, então, nem pensar. Novamente, os chefes, o poder, até mesmo a repressão, são invisíveis. O medo governa.

Arábia, de Affonso Uchoa e João Dumans

Arábia, de Affonso Uchoa e João Dumans

O poder também é um tanto invisível em Arábia (2017), de Affonso Uchoa e João Dumans. De início, há um garoto ensimesmado, a relação com a família, uma apatia estranha, um território que não estamos acostumados a ver em Ouro Preto. A impressão é a de que veremos mais um coming-of-age, mas logo o filme mostra o que realmente é: um coming-of-age. Pois o adoecimento de um operário e a descoberta de um caderno com suas memórias rompem tudo e fazem o filme começar de novo. Uma marca forte do cinema contemporâneo: quando uma nova história a qualquer momento pode tomar conta de outra. Podemos fazer uma piada com o tal do cinema de fluxo, coqueluche da crítica francesa dos anos 1990 e 2000, e pensar essas obras em uma categoria nobre: a estética do refluxo.

Em toda piada ruim há algo de visionário, então vamos adiante…. pois há alguns anos, talvez Arábia teria sido um road-movie silencioso dedicado ao movimento errante do personagem, às paisagens, aos planos intermináveis. É muito bom ver como o cinema reabilitou a palavra, pois o texto, outra vedete desse cinema das mil e uma narrativas, é o grande fio condutor aqui: o narrador, o operário desfalecido, diz que vai contar uma história de amor, mas que antes precisa contar outras histórias (dentro dessas histórias há ainda outras, cartas, piadas, canções, sonhos). Se o filme chinês mostra o despertar coletivo em relação aos direitos trabalhistas, aqui existe uma tomada de consciência individual e a angústia de não conseguir compartilhá-la. Em primeiro lugar, transformar a memória em palavra escrita. As viagens, os encontros com diferentes ideias, acabam provocando um sentido de deslocamento. Quem eu sou? Onde vivo? Não num sentido metafísico, mas histórico, social, marxista, brechtiano (uma das belezas do filme é lembrar que essa descoberta com os pés no chão também tem seus enormes mistérios, ainda mais tão próximos do sentimento do amor).

Distanciar-se da própria história para poder pensar seu lugar dentro da sociedade sob uma perspectiva crítica. Deveria ser (mas muitas vezes não é) a base de toda reflexão à esquerda. Mais do que qualquer outro filme do nosso tempo, inclusive a festa de ficções sob o pano de fundo do empobrecimento português das As Mil e Uma Noites de Miguel Gomes, Arábia consegue dar um sentido essencialmente político à fascinação contemporânea diante do canto de sereia das narrativas. A fabulação desgoverna. E a ideia de refluxo faz todo o sentido aqui. Recorrendo ao dicionário: “a doença do refluxo gastroesofágico é uma doença digestiva em que os ácidos presentes dentro do estômago voltam pelo esôfago ao invés de seguir o fluxo normal da digestão”. O protagonista deixa de seguir o rumo natural das coisas, estranha tudo, percebe o horror, a violência. O corpo adormece, mas a mente explode: a agonia e o êxtase desse homem marcam os momentos finais de Arábia. Numa sala de cinema cheia e atenta, em absoluto silêncio, é um troço muito poderoso. Em outros contextos de exibição, já sob as nuvens escuras mas cheias de furos de um fascismo tatibitati, pode ser ainda mais.