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Publicado por em dez 7, 2020 em Destaque, Uncategorized |

A memória, o pertencimento e outras questões

Por Ivonete Pinto, especial para o site da Accirs.

O homem atrás da janela (2018), de Naum Roberto Gomes, participou da quarta edição da Mostra de Cinema Negro de Pelotas e revê-lo foi uma experiência que reforçou a ideia de como o cinema pode ser transformador quando ecoa como caixa de ressonância de outras vozes. A partir de um microcosmo, podemos enxergar o macrocosmo.

Naum Gomes iniciou o filme quando Barak Obama era presidente dos Estados Unidos e o Brasil ainda tinha esperanças. A universidade via crescer as políticas públicas de inclusão e era possível aos alunos falarem de si sem medo de projetar o futuro. Esta rememoração  tem a ver com o prefácio de Ta-Nehisi Coates para o livro  de Toni Morrison, “A Origem dos Outros – Seis ensaios sobre racismo e literatura”. Ela fala do cenário onde Morrison proferiu as palestras sobre “a literatura do pertencimento” que originaram o livro. Coates chama a atenção para o ano de 2016 e os progressos no combate ao racismo nos Estados Unidos que logo no final do mesmo ano se evaporaram com a eleição de Donald Trump.

Parece que o mar Vermelho precisa se abrir de novo. Quatro anos depois tudo piorou nos Estados Unidos, para há poucos dias melhorar, e tudo piorou no Brasil para, sabe-se lá o que vai acontecer.

O certo é que a trajetória de Naum Roberto Gomes pode ser vista em retrospecto tendo este contexto mais alargado, que aponta para o nacional e o nacional que aponta para o local. Ou seja, o cenário de uma tímida produção universitária, que espelha os movimentos do mundo. Olha para dentro para enxergar para fora.

A animação O homem atrás da janela é autoral sob todos os aspectos. Trata o pertencimento, ideia que Morrison, Prêmio Nobel de Literatura, se debruça nas palestras em Harvard para uma elite branca. Lá, só em 2017, pela primeira vez, a universidade viu surgir uma maioria de não brancos.

Naum criou seu filme em meio a uma maioria branca, pois ainda os cursos públicos de cinema não refletem os percentuais de diversidade que deveriam. O enredo mostra  um menino que por anos a fio, caminhando em uma rua da periferia da zona Norte de São Paulo,  próxima da sua casa, via um homem na janela e ficava pensando quem seria. A voz que dubla o personagem é de Naum e se coloca no lugar do outro, o homem na janela, que também pode ser ele. O menino vai contando como começou a gostar de desenho, sua relação com Van Gogh na escola, suas conversas com a irmã caçula, seus primeiros passos na área que escolheu. A memória é o leitmotiv para falar de várias coisas em torno de indivíduos sociais invisíveis, como o diretor já se sentiu tantas vezes. Tempo, memória, reinvenção.

Em termos de categoria, O homem atrás da janela é uma autoficção, um subgênero nascido na literatura que traz em si um paradoxo, pois apresenta uma autobiografia inventada. Uma recorrência nos roteiros de muitos filmes de cursos de cinema hoje no Brasil, que como tendência temática se relaciona com autocuidado e autoconhecimento, que por sua vez alcança sua dimensão mais completa quando um filme de autoficção é analisado, em texto,  pelo próprio autor. No caso de  Naum Gomes, trata-se de um filme de final de curso, praticamente realizado por ele sozinho em animação 2D quadro a quadro,  que rendeu um artigo acadêmico de final de curso. Uma reflexão sobre a prática, como convencionamos chamar na academia. Em princípio, poderia soar como reminiscências em torno do umbigo, algo narcisístico, mas há  um distanciamento. A técnica da animação já em si carrega este distanciamento. Lembremos do curta-metragem de Nara Normande, Guaxuma (2018). É autoficção, mas mais do que isto, projeta a identificação de centenas de outros alunos, que no caso de Naum,  estudam em cidades muito distantes da sua e que enfrentam sensações de não pertencimento. Sensações que levam a crises, que levam ao amadurecimento.

No curta, o distanciamento é provocado pela  rua, pela casa da esquina, pelo tempo que passa e proporciona ao personagem (o diretor) dar-se conta de sua trajetória. Dar-se conta de como o Brasil mudou do tempo que observava o homem na janela ainda quando criança e depois, quando volta para sua casa em São Paulo, naquela rua, já adulto quase se formando em cinema, e percebe o significado no homem na janela. Percebe a transformação, sendo que é o próprio personagem/autor que nos aponta seu estado de espírito: ele tem orgulho da formação e busca o olhar dos seus vizinhos para o reconhecimento que merece.

No final, um presente para o público. A casa de esquina do  homem na janela sai do desenho para virar  live action, como que a dizer que o imaginado pode ser real.