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Publicado por em out 13, 2020 em Uncategorized |

Rita Azevedo Gomes, e as saudades de ir ao cinema

Por Carla Oliveira, do Zinematógrafo e do Cineclube Academia das Musas, especial para o site da Accirs

Rita Azevedo Gomes é uma cineasta portuguesa de grande talento. Sua obra singular se destaca por um rigor formal, uma plástica sublime e por sua erudição. 

A Vingança de uma mulher (2012), considerado por muitos como a sua obra-prima, foi exibido em Porto Alegre na ocasião em que o Cineclube Academia das Musas lançou a primeira edição de sua revista digital, que conta com uma imagem desse filme maravilhoso em sua capa. Essa sessão especial ocorreu em agosto de 2017, na Cinemateca Capitólio, e, desde então, nunca mais tivemos a oportunidade de vermos os filmes da Rita em salas de cinema, aqui em nossa cidade. Temos a expectativa de ver A Portuguesa (2018), um dos seus filmes visualmente mais impactantes, quando o isolamento social devido à pandemia de covid-19 acabar, mas, por enquanto, nossas experiências cinéfilas estão restritas ao que podemos acessar em nossos ambientes domésticos.

Eis que, neste período em que precisamos ficar em casa, a plataforma de streaming MUBI  apresentou uma mostra sobre o cinema de Rita. Além dos já citados A Vingança de uma mulher e A Portuguesa, entraram em exibição: Frágil como o mundo (2001) e Correspondências (2016). As salas de cinema fazem muito mais jus à beleza do cinema de Rita, mas a mostra do Mubi ofereceu a muitos cinéfilos uma ótima oportunidade de conhecer e admirar a sua obra.

Rita, que nasceu em Lisboa, em 1952, realizou até hoje 10 filmes, sendo o primeiro deles, O Som da terra a tremer (1990), já genial. São filmes que falam de amor, fragilidade, arte, criação, passagem do tempo. A filosofia, a cultura e a sociedade europeias são retratadas na obra de Rita, que não deixa também de refletir sobre a situação política e econômica dos países europeus, tanto em seus filmes de época quanto nos que retratam a contemporaneidade. Destacam-se, também, entre os seus longas-metragens: a 15ª Pedra – Manoel de Oliveira e João Bénard da Costa em conversa filmada (2007), A Coleção invisível (2009) e Danças macabras, esqueletos e outras fantasias (2019).

Apesar de sua primeira realização ser datada de 1990, Rita já estava envolvida com cinema desde o final dos anos 1970. Uma das primeiras vezes em que seu nome apareceu nos créditos de uma obra cinematográfica (como figurinista) foi em Francisca, uma das obras-primas de Manoel de Oliveira. Realizado em 1981, esse filme foi adaptado a partir do livro Fanny Owen, de Agustina Bessa-Luís, enorme escritora portuguesa, que, junto a Sophia de Mello Breyner Andresen, deixou marcas indeléveis no cinema lusitano (inclusive no de Rita), reconhecido internacionalmente por ser próximo à palavra, ao teatro, à escrita literária e à poesia das narrativas orais. Por esses anos, outras portuguesas já se destacavam na direção. São de 1976, os belíssimos Trás-os-Montes, de Margarida Cordeiro e Antônio Reis, e Máscaras, de Noêmia Delgado. A pioneira dentre as mulheres do cinema lusitano, contudo, foi Bárbara Virgínia. Foi ela a primeira portuguesa a dirigir um longa-metragem, Três dias sem Deus (1946), ainda sob a ditadura de Salazar.

Os filmes de Rita normalmente nascem de um texto literário. Às vezes único, como em A Coleção invisível, criado a partir de um conto de Stefan Zweig, A Portuguesa, baseado em um conto de Robert Musil (adaptado por Agustina Bessa-Luís) e A Vingança de uma mulher, nascido de um conto de Barbey D’Aurevilly presente no livro As Diabólicas. Ou, outras vezes, a partir de um conjunto de textos, como é o caso do poético Frágil como o mundo e de Correspondências.

Frágil como o mundo é o segundo longa-metragem de Rita. A inspiração para o filme surgiu quando ela leu no jornal a notícia de que um casal de adolescentes foi encontrado morto à sombra de uma árvore, em um campo do Alentejo. Frágil Como o Mundo é também um poema de Sophia de Mello Breyner Andresen, que fala sobre o mal de amar alguém em um lugar tão imperfeito como o mundo. Rita cria um mosaico onde entram a notícia do jornal, o poema de Sophia e fragmentos literários de Bernardim Ribeiro, Camões, Rilke, Cecília Meireles e Agustina Bessa-Luís, apresentados junto a imagens que nos falam de um amor impossível, um menino órfão, uma casa abandonada, a proximidade do amor com a morte, a morte na água e a inevitável comunhão com a natureza. Elementos extremamente românticos que Rita mescla à perfeição, criando um filme visualmente impressionante, original e poético.

Correspondências fala das cartas trocadas pelos poetas Sophia de Mello Breyner Andresen e Jorge de Sena durante o longo período em que o último esteve exilado, durante o regime salazarista. São cartas que falam de amizade, da situação política de Portugal, da vida de Jorge no exílio e das suas criações, seus trabalhos. Os textos epistolares e as poesias desses autores são apresentados por diversas vozes, em diversas línguas, inclusive no grego, em consonância com o universo de Sophia, que se aproximava da Grécia em sua temática.

Os textos de Correspondências são lidos pelos atores em postura hierática, teatral. Há um rigor na representação dos atores nos filmes de Rita, que às vezes, também, nos brindam com movimentos coreografados extremamente harmoniosos, como os de Rita Durão, em A Vingança de uma mulher. Os cenários são simples, muitas vezes retratam ruínas, mas sempre com grande apuro visual. Rita tem uma forma única, extremamente poética, de conjugar imagens, primorosas em sua composição, com textos, som e  música. Seus filmes são fascinantes, e nos fazem sentir muitas saudades de ir ao cinema.

Revista digital Academia das Musas, nº 1