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Publicado por em dez 29, 2020 em Destaque, Uncategorized |

Uma Homenagem a Sarah Maldoror

Por Carla Oliveira, especial para o site da Accirs.

Pioneira do cinema africano, Sarah Maldoror foi uma das vítimas fatais da pandemia de COVID-19, que deixa este ano de 2020 tão enlutado.

Cineasta Sarah Maldoror

Embora tenha nascido na França, em 1939, a origem étnica de Sarah Maldoror remonta às Antilhas, espaço de resistência da cultura negra. Seu pai era natural de Guadalupe – ilha próxima à Martinica, terra de Aimé Césaire e de Frantz Fanon, intelectuais que propagaram os movimentos de Negritude e Pan-Africanismo, respectivamente – e também do Haiti, país onde ocorreu a primeira revolução vitoriosa contra o racismo, o colonialismo e o imperialismo.

Sarah Maldoror estudou Artes Dramáticas em Paris e cofundou, em 1956, o grupo Companhia de Arte Dramática de Griots, composto unicamente por atores negros, com os quais encenou peças de Sartre, Genet e Césaire. Passou a se envolver com os movimentos africanos de libertação. Conheceu exilados, como o escritor angolano Mário Pinto de Andrade, fundador do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e seu futuro companheiro de vida, luta e arte. Sua formação em cinema se deu na URSS, onde sofreu forte influência do pensamento marxista, e seu primeiro trabalho como assistente de direção foi ao lado de Gillo Pontecorvo em A Batalha de Argel (1966), obra que retrata a luta da Frente Nacional de Libertação da Argélia pelo fim do domínio colonial francês no país. E foi justamente na Argélia independente que Sarah Maldoror realizou Monangambé (1968), seu primeiro curta-metragem, ambientando-o em Angola.

Monangambé é um filme pré-independência de Angola, o que é singular na história do cinema africano, que surgiu, na maior parte dos países, após os processos de descolonização. Foi financiado por organizações militantes argelinas e representou Angola na seleção da Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes de 1971, o que mostra um papel pioneiro do cinema no reconhecimento do país, ainda antes de sua independência, que só viria a ocorrer em 1975. É um filme crítico à violência da polícia colonial portuguesa. Foi adaptado por Sarah Maldoror, Mário Pinto de Andrade e Serge Michel do conto O Fato Completo de Lucas Matesso (1962), de Luandino Vieira. O protagonista é um preso político. Sua esposa, em uma visita, promete lhe levar um fato. Os policiais pensam que isso se trata de alguma mensagem cifrada e o torturam em busca de nomes de outros membros da resistência. Fato, na verdade, é um prato angolano preparado com feijão, peixe, banana e óleo de palma. Além de ressaltar a bravura e solidariedade do preso angolano, que não trai seus companheiros de luta, o filme mostra o quanto os portugueses desconheciam os valores culturais africanos.

Uma cópia restaurada pelo Arsenal Institut de Berlim de Monangambé foi apresentada na Cinemateca Capitólio em uma mostra em diálogo com a Décima Primeira Bienal de Artes Visuais do Mercosul, realizada em Porto Alegre e Pelotas em 2018. Na mesma ocasião, foram apresentadas duas outras obras seminais do cinema realizado na África: A Negra de… (1966), de Ousmane Sembène, e Carta Camponesa (1975), de Safi Faye. Meu apreço aos cinemas africanos se desenvolveu muito na Cinemateca Capitólio e na saudosa Sala P. F. Gastal. Além de várias produções africanas contemporâneas, foram nessas salas também projetados filmes de outros grandes pioneiros como Souleymane Cissé, Idrissa Ouedraogo, Med Hondo e Djibril Diop Mambety. 

Em 1970, na Guiné-Bissau, Sarah Maldoror filma seu primeiro longa-metragem (Des Fusils Pour Banta, 1970), dado como perdido. Falava do envolvimento das mulheres na militância, um tema que lhe é caro. Já seu segundo longa, Sambizanga (1972), é um marco na história do cinema africano. Também adaptado da obra de Luandino Vieira (A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, 1961) — por Sarah Maldoror, Mário Pinto de Andrade, Maurice Pons e Claude Agostini — , mostra a organização dos movimentos de resistência e luta contra o colonialismo em Angola. Foi filmado no Congo-Brazzaville, onde se cria tanto a paisagem do interior de Angola, quanto a de Luanda colonial, com seus musseques (bairros populares) e seus órgãos da administração portuguesa. Os personagens principais são o tratorista Domingos e sua esposa Maria. Domingos é levado de sua casa no interior de Angola como preso político e sofre grande violência por parte da polícia colonial. Maria, com seu pequeno filho Bastião nas costas, parte em busca do marido, atravessando a pé as estradas do seu país, enfrentando a truculência e a burocracia das instituições coloniais e encontrando apoio nas pessoas simples, junto às quais tem o seu despertar político. A solidariedade do povo angolano é exaltada: Domingos morre para não entregar um companheiro do incipiente movimento da resistência, que se organiza entre os revolucionários do interior e da capital. Pontos controversos são trazidos à tona, como uma discussão sobre a maior ou menor importância dos conflitos de classes em relação às lutas entre negros e brancos. Há presença de brancos no movimento de resistência e de negros a serviço da polícia colonial. O filme se encerra com um tom esperançoso, assinalando a data do primeiro ato da longa luta pela libertação de Angola. 

Nos anos seguintes, Sarah Maldoror realizou vários curtas-metragens e documentários, alguns deles em Cabo Verde e em Guiné-Bissau. Ela nunca filmou em terras angolanas, apesar de ter ajudado a construir as primeiras imagens e memórias do país, o que fez com marcante poesia. 

A primeira retrospectiva internacional da obra de Sarah Maldoror, com a presença da diretora em sua última aparição pública, foi promovida pelo Museu Reina Sofia e o Documenta Madrid em 2019. Logo em seguida ao seu falecimento, o Museu Reina Sofia e a Cineteca Madrid disponibilizaram on-line, para o mundo inteiro, um dos programas que constou na retrospectiva, El Jazz de París, Un Cine Popular Antirracista, composto por três filmes: Miró, peintre (1980), Scala Milan AC (2003) e o maravilhoso Un dessert pour Constance (1980), onde Sarah Maldoror mostra que, além de ter sido realizadora de um cinema militante pleno de lirismo e poesia, ainda possuía um humor extremamente cativante.