Páginas
Seções

Publicado por em dez 1, 2022 em Artigos, Destaque, Em destaque |

III Festival Cinema Negro em Ação destaca a potência da mulher e a força do ativismo

Por Danilo Fantinel, presidente da Accirs

A terceira edição do Festival Cinema Negro em Ação ocorreu em Porto Alegre entre 20 e 27 de novembro de 2022, durante a Semana da Consciência Negra no Brasil. O período é marcado justamente pelo 20 de novembro, o Dia da Consciência Negra idealizado pelo professor, escritor e poeta gaúcho Oliveira Silveira, um dos fundadores do Grupo Palmares.

Cena do videoclipe Chorar, dirigido por Juliana Segóvia.

Neste ano, o festival reuniu 39 produções de novos cineastas brasileiros, incluindo ficções, documentários e filmes híbridos em longa e curta-metragem, bem como videoarte e videoclipes. As exibições ocorreram na Cinemateca Paulo Amorim, na grade de programação da TVE-RS e na plataforma Cultura em Casa.

Entre os destaques estiveram Marte Um, de Gabriel Martins, longa premiado no Festival de Cinema de Gramado (e indicado brasileiro a disputar o Oscar de filme estrangeiro) e justamente Oliveira Silveira, o Poeta da Consciência Negra, de Camila de Moraes. O homenageado desta edição foi o ator Antonio Pitanga. Todos os premiados foram divulgados no Instagram do festival. Abaixo, comentários sobre alguns dos filmes exibidos.

Samba às avessas, de Gautier Lee (RS)

Variando entre os formatos ficcional, documental e musical, o filme híbrido de Gautier Lee (RS), com roteiro de Ana Moura, se volta à música da cantora porto-alegrense Pâmela Amaro para ecoar os reposicionamentos identitários e culturais que as mulheres negras vêm protagonizando na sociedade. Inspirado pelo disco de estreia de Pâmela, o homônimo Samba às Avessas (2022), o curta-metragem alerta para este novo momento. Um tempo em que as mulheres negras não aceitam mais serem vistas como corpos objetificados, sem nome, sem alma e sem eu, sem história, planos, sonhos ou desejos. Assim como as canções de Pâmela, o filme aponta tanto para a consagração do feminino materno ancestral quanto para a conquista de novos espaços sociais, culturais e musicais por parte de mulheres decididas a reverter processos de anulação, silenciamento e opressão a que costumam ser submetidas. Propondo deslocamentos formais na linguagem audiovisual, Samba às avessas se anuncia como um álbum visual da cantora, desenvolvendo narrativas complementares com espaço-tempo fluidos, memorialísticos e afetivos, celebratórios da ancestralidade e afirmativos da negritude. Chamam a atenção o calor da fotografia, a paleta de cores aquecidas e a montagem, que integra trechos ficcionais e documentarizantes por meio de imagem, poética, canto e dança. O curta, ou álbum visual, teve destacados oficialmente pelo festival a direção de Gautier Lee, o desenho de som de Régis Moewius, a direção de arte de Vanessa Rodrigues, e a trilha sonora de Tuti Rodrigues e Pâmela Amaro.

Olha pra elas, de Renato Dornelles (RS)

Se a vida das mulheres em geral e das mulheres negras, em particular, é repleta de desafios, tudo se torna ainda mais difícil para detentas do regime penal. Sem inovações de linguagem ou formato, o documentário de Renato Dornelles (RS) é contundente pelas histórias de vida que apresenta. A partir de conversas com cinco internas do Presídio Estadual Feminino Madre Pelletier, em Porto Alegre, e da Penitenciária Estadual Feminina de Guaíba, bem como com familiares das presas e com profissionais do sistema judiciário, o filme revela o doloroso cenário do crescente encarceramento feminino. Mulheres das mais diversas idades, mas sempre de origem humilde, em condições de vulnerabilidade, pagam sua pena em dobro: cumprem o isolamento enquanto sofrem com o abandono da família. Em geral, as internas perdem o contato com suas mães e filhos, e quase sempre amargam o sumiço dos maridos. Paradoxalmente, muitas delas foram encarceradas após serem envolvidas no consumo e no tráfico de drogas por ação de homens próximos. Algumas delas inclusive revivem o ciclo de pobreza, baixa escolaridade, abusos, crime, prisão e penitência que suas mães vivenciaram antes. Assim como O Cárcere e a rua (2004), de Liliana Sulzbach, e Central (2016), de Tatiana Sager em codireção com Dornelles, Olha pra elas registra a dissolução de famílias tanto pelo ambiente nocivo do crime quanto pelo degradante sistema prisional brasileiro. Mas há quem lute para manter a união com quem se ama, como o pai com duas crianças que faz visitas à esposa presa falando com ela desde a calçada, ou as irmãs adolescentes que atuam para provar a inocência da mãe detida. Estes três documentários incidem duramente sobre o espectador, apresentam diferentes realidades sobre um mesmo contexto e demonstram porque a dignidade humana precisa ser defendida em todos os lugares, sob qualquer aspecto.

Patuá, de Renaya Dorea (RJ)

Por vezes, precisamos de ajuda para seguir nossos trajetos. Neste belíssimo curta de Renaya Dorea (RJ), a reconfiguração do amor e a crença no sagrado levam a protagonista a retomar seu percurso libertador. Para quebrar um ciclo vicioso de sofrimento pela perda, Maya invoca o espírito de Ayo, um antigo amor que está se transformando em egum (espírito potencialmente obsessor). Juntas, elas criam um patuá, amuleto de proteção espiritual yorubá, e invocam suas ancestrais em um ritual que as fará, cada uma, seguir seu caminho em paz com a outra. Em Patuá, Renaya representa o simbólico sagrado de raízes africanas com muita criatividade e respeito. O encontro do físico com o metafísico, do natural com o sobrenatural e do humano com o espiritual se dá em uma excelente sequencia de planos e contraplanos, aproximando gradualmente estas oposições complementares inspiradoras da trama. A fotografia, a luz, a direção de arte, o design de som e a música destacam elementos míticos e ritualísticos de uma ancestralidade que se mantém na contemporaneidade pelos ritos da fé e pelos atos culturais. Neste sentido, o curta sublinha sentidos de uma cultura afrolatina-indígena que também ecoam em Chorar, de Juliana Segóvia, Ato 1: Licença para chegar, de Thuanny, e Gestos de proteção, de Larissa Dardania.

Chorar, de Juliana Segóvia (MT)

No caso do videoclipe Chorar, das cantoras Karola Nunes e Pacha Ana, mulheres negras e afrolatinas maquiadas, adornadas com contas e conchas, colares e brincos materializam o imaterial arquétipo do feminino. Enquanto cantam e dançam, são purificadas por uma chuva fértil de águas e brilhos prateados. Belo trabalho de Juliana Segóvia (MT) com direção de arte, foto, luz e atuação afinadas.

Ato 1: Licença para chegar, de Thuanny (SC)

Já neste clipe ensaístico da artista multimídia Thuanny (SC), ritos de iniciação e de passagem despertam a mulher para que, da partida à chegada, ela possa estabelecer seus próprios caminhos com apoio de uma anciã. Novamente, a água e a terra se conectam com o místico e com o natural, com o sensorial ancestral, com o simbólico sagrado. Como em Patuá e Chorar, em Ato 1: Licença para chegar o simbolismo da espiritualidade inspira a religação da mulher consigo mesma em um processo de reconhecimento da própria integridade com vistas à libertação para a vida plena.

Gestos de proteção, de Larissa Dardania (MG)

A cineasta e artista visual Larissa Dardania (MG) apresenta um ensaio poético com atmosfera espiritual e materialidade plástica, audiovisual. No filme, a intervenção sobre fotografias de corpos humanos a partir de elementos e substâncias diversas aponta para os trabalhos de resguardo da alma e da carne. No rito poético traduzido em som e imagem, busca-se equalizar corpo, alma e mente para que do equilíbrio surja o conhecimento e a proteção. “Salgo o corpo para adoçar a alma e deixo ir tudo aquilo que não é meu, mas tenho carregado”, diz a protagonista. Os elementos do sagrado religioso e do ritualístico retornam, como a fala, fogo, água, velas, ervas, reza e fé.

Sirmar Antunes, de Zeca Brito (RS)

O dia 06 de agosto de 2022 foi marcado pelo falecimento do ator gaúcho Sirmar Antunes. Vítima de infarto aos 67 anos, Sirmar atuou por quase cinco décadas no teatro, no cinema e na TV interpretando papeis marcantes. Nas grandes telas, participou de O dia em que Dorival encarou a guarda (1986), Netto perde sua alma (2001), Lua de Outubro (2001) e A Superfície da Sombra (2017), entre outros. Pela forte presença nas artes, ganhou o Prêmio Leonardo Machado, em 2021, durante o Festival de Cinema de Gramado. Este filme de Zeca Brito, produzido pela Cinemateca Paulo Amorim e pelo Núcleo de Audiovisual do Iecine-RS, registra justamente o impacto contemporâneo de Sirmar, mas também, pelas palavras do ator, ecoa memórias que nos levam a sua adolescência, quando ele entra em contato com o teatro escolar. A estreia profissional se dá no Teatro de Arena de Porto Alegre, momento em que desbravou caminhos e enfrentou preconceitos enquanto ator negro em uma cidade conservadora em contexto ditatorial. No documentário Ilustrado com material de arquivo, como fotografias e cenas de filmes, Sirmar defende a consciência negra como um valor adquirido por seus ancestrais desde a diáspora imposta pelo sistema escravocrata colonial. Destaca o valor da memória cultural, das artes e da educação na formação cidadã, sublinhando acima de tudo o ofício do ator. Não à toa, a entrevista com Sirmar foi captada no palco do Theatro São Pedro, tendo ao fundo as cadeiras de veludo da plateia. O filme ganharia com uma luz mais caprichada.

Genocídio e Movimentos, de Andreia Beatriz, Hamilton Borges e Luis Carlos de Alencar (RJ)

No filme de Andreia Beatriz, Hamilton Borges e Luis Carlos de Alencar (RJ), a narrativa documental trafega entre dois âmbitos que reverberam a opressão causada pelo genocídio do povo negro brasileiro por meio do braço armado do Estado: o da arte e o do ativismo político-social. No primeiro caso, o filme observa o trabalho de um ator performático baiano que tenta expressar pelo corpo a repressão a que corpos negros são constantemente submetidos. O artista performa seu gestual sob projeções de fotografias ou vídeos que registram casos policiais envolvendo violência racial. A experiência sensorial busca a transcendência, pois se por um lado temos o performer em transe simbólico, por outro caímos em uma espiral metalinguística em que a violência do fato se torna potência estética. Transcendem também os formatos audiovisuais quando o material de arquivo jornalístico se torna vídeoarte performática e, ao mesmo tempo, filme documentário. Portanto, há aqui inúmeras dobras entre a realidade e sua encenação, entre o fato, a arte, a imagem e o documento audiovisual. E aí se chega ao outro âmbito que ecoa a opressão causada pelo genocídio negro: a mobilização política contra o racismo por parte do Movimento Reaja, cujos integrantes denunciam a violência policial-racial que inspira o trágico espetáculo do artista baiano. Como diz um entrevistado, há uma guerra social, étnica e cultural em que é preciso definir o território do teatro negro, da literatura negra, do cinema negro. Um território que é mesmo o corpo negro. Na fala de uma entrevistada, entendemos que a corporalidade deste território conflagrado é marcada por sangramento, sofrimento. São principalmente estes os corpos que se levantam contra o legado nefasto de um estado pós-colonial que ainda hoje castiga o povo negro. Genocídio e Movimentos se ergue muito bem entre estes dois registros formais muito diferentes. Seja aquele mais poético e artístico, com espaço para o pensamento criativo, o devaneio e a sensibilidade à flor da pele, seja este outro mais agudo, como olhar crítico, voz ativa, discurso político e ação social, ambos demonstram que não basta não ser racista. É preciso ser antirracista. O filme foi escolhido o melhor longa-metragem do III Festival Cinema Negro em Ação.

Leia sobre Último Domingo (RJ), de Joana Claude e Renan Barbosa Brandão, e Drapo A, de Alix Georges e Henrique Lahude, neste link.

Texto de Danilo Fantinel, Presidente da ACCIRS, originalmente publicado no Cinematron.