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Publicado por em mar 23, 2014 em Artigos |

Viagem ao interior de si mesmo (Viagem ao Princípio do Mundo, 1997)

viagem_mundopor Adriano de Oliveira Pinto

O cineasta luso Manoel Cândido Pinto de Oliveira, ou simplesmente Manoel de Oliveira – nome que os cinéfilos aprenderam a admirar –, fala ao cérebro e ao coração. Seus filmes trazem reflexão, mas sabem também comover. Viagem ao Princípio do Mundo (Portugal/França, 1997) é exemplo claro desse tipo de cinema em duas vias, mostrando a razão e a emoção de mãos dadas.

Viagem… segue o rumo saudosista que caracteriza parte da temática do veterano diretor – cem anos de vida completos neste 11 de dezembro de 2008 –, algumas vezes manifestado de modo bem mais pungente, casos deste terno filme e do igualmente nostálgico Porto da Minha Infância (2001). A história narrada remete à procura por suas origens de um ator francês de ascendência lusitana, Afonso (Jean-Yves Gauthier). Ele está participando de um filme rodado em Portugal e aproveita para, acompanhado de colegas, visitar a aldeia de onde seu pai emigrou e enfim conhecer alguns parentes seus. A jornada é pontuada por diálogos dos mais diversos, abordando recordações particulares dos personagens, o tema da família e uma visão do mundo contemporâneo ao fim do século passado, tudo regado à luz de filosofias individuais. Além de tanto, traz consigo uma abordagem emotiva e francamente humana das perseguições pela identidade pessoal e pelo sentido da vida.

Sabe-se que Manoel de Oliveira não é muito afeito aos grandes movimentos de câmera, que seu cinema é feito de uma simplicidade que deslumbra por sua eficiência, mas o velho luso surpreende com um recurso inteligente, extremamente inventivo: ao realizar o efeito de uma câmera presa à parte traseira de um automóvel em movimento, ele realiza belos e inusitados travellings de afastamento, mostrando as paisagens que ficam para trás no caminho dos viajantes – como a dizer que o importante está no que passou, o pretérito em si, e não o futuro, o porvir. É a nostalgia se sobrepujando à crença no amanhã. Assim, Oliveira faz também um diálogo com Proust, propondo através de seu filme que o tempo passado talvez não foi perdido, mas ganho; que a busca de um ser por sua realização plena, a partir de um certo ponto da vida, poderia se resumir a reviver memórias como quem docemente lembra uma trajetória percorrida.

Além dos grandes personagens de Viagem… – Afonso, sua tia (a vetusta Isabel de Castro, falecida em 2005) e Manoel (Marcello Mastroianni, em seu derradeiro trabalho, empresta às cenas em que figura o seu carisma e o seu talento, mesmo visivelmente abalado pela doença que o vitimaria) – e dos bons coadjuvantes que são Diogo Dória como Duarte e a musa oliveiriana Leonor Silveira como Judite, se sobressai na tela uma figura inanimada, que entra na trama como lenda para após se tornar um objeto de reflexão. Trata-se de Pedro Macau, estátua de um homem de bigode, a sustentar um tronco sobre um de seus ombros. A poesia popular que cerca Pedro Macau representa um cântico da sina humana, e a equipe de viajantes compreende isto à perfeição.

Ao final de sua saga em terras ibéricas, Afonso encontra a sua família em uma aldeia pobre do interior português, onde acha uma velha tia que não o compreende – no mais amplo dos sentidos, pois fica indignada pelo fato de seu sobrinho não saber falar a língua de Camões –, mas por força do coração supera a barreira idiomática e passa a lhe nutrir afeto. Em tal lugarejo, um dos membros da comitiva se depara com uma profusão de prenomes iguais ao do ator a estampar as caixas postais daquelas casas (homenagem da vila a Dom Afonso Henriques, o grande fundador da pátria, que derrotou enorme exército de mouros na batalha de Ouriques em 1139, um dia antes da qual jurou ter falado com Cristo em pessoa acompanhado de um séquito de anjos), herança de um país que reverencia fortemente seu passado. Talvez seja daí, desse espírito tão cultor de fatos e glórias em tempos remotos, que emerja a nostalgia de Oliveira em seus filmes, algo que supera um tópico de autoralismo do cineasta para ser espelho do sentimento coletivo de uma nação. Não por acaso, o hino nacional luso diz na primeira estrofe “Heróis do mar, nobre povo, / Nação valente, imortal, / Levantai hoje de novo / O esplendor de Portugal”.

Pois Afonso, consciente de sua ancestralidade e conciliado com ela, volta um homem transformado após sua atávica experiência. Tal história já seria por si algo restaurador e humanamente belo, não fosse algo a potencializá-la ainda mais em tal aspecto: saberemos ao final da película que o episódio se baseia em fatos reais.

O quase centenário diretor nascido na cidade do Porto – chamada de “A Invicta”, como sua história assinala – mostra, ao limiar de um século de existência (89 anos de idade quando realizou este filme), uma lucidez impressionante e um talento ainda mais crescente à medida que o tempo passa, vide Espelho Mágico, primorosa obra de 2005. Nas duas últimas décadas, a ascensão de seu cinema é notória, tanto em qualidade como em reconhecimento internacional. Manoel não nos deixa de surpreender película após película e aqui nos ensina que nunca é tarde para se sentir realizado, que muito do que somos enquanto pessoas se deve aos nossos antepassados, que a vida é um descortinar permanente, numa soma de mistério e magia a cercar a condição humana.

Viagem ao Princípio do Mundo (idem)
Direção: Manoel de Oliveira
Roteiro: Manoel de Oliveira e Jacques Parsi
Com: Marcello Mastroianni, Jean-Yves Gauthier, Isabel de Castro, Leonor Silveira, Diogo Dória, José Pinto
País de produção: Portugal/França
Ano de lançamento: 1997
Não disponível em DVD no Brasil (o filme está disponível apenas em VHS)
Duração: 95min.