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Publicado por em mar 25, 2014 em Artigos |

Trinta dias de solidão

28por Eleonora Coutinho

Road movies mostram um ou mais personagens em uma jornada pela descoberta de novos lugares e novas pessoas. Ainda, e principalmente, revelam a jornada de auto-conhecimento desses personagens. Em Viajo porque preciso, volto porque te amo (Karim Aïnouz e Marcelo Gomes, 2009) é difícil discutir a mudança emocional de Zé Renato, protagonista, sem falar de algo semelhante no espectador. Durante uma hora e dez minutos, ele é Zé Renato, ele vive Zé Renato; aquele olhar é seu, aquela solidão é sua e aquela voz é a sua própria. O que gera a inevitável pergunta: de onde vem tal empatia se o protagonista não tem uma presença corpórea no filme?

O filme é um diário do protagonista com impressões sobre seu trabalho, sua viagem e, especialmente, sua vida pessoal. Sabemos quase tudo sobre Zé Renato, porém não sabemos como é o seu rosto. Nossa ligação com ele é construída pela sua voz e pelas imagens que ele nos mostra. E embora seja incrível acreditar que um filme em que o protagonista é “escondido” o tempo todo possa não somente prender a atenção da platéia, mas também realmente cativá-la, esse é provavelmente o ponto de sucesso do longa. Ao não revelar a figura de Zé Renato, Karim Aïnouz e Marcelo Gomes optam por deixá-lo em aberto, para que qualquer um possa assumir o seu lugar.

Zé Renato, interpretado por Irandhir Santos, é abandonado pela sua “galega” e parte ao sertão em busca de algo que ele não tem plena noção do que seja. E se no início do filme e de sua jornada ele parece fugir de sua verdade, no decorrer percebemos que o sertão, destino escolhido, o leva ao encontro dela, chegando à solidão absoluta. O caminhão que viaja através do sertão é a figura do movimento pela transformação em cenário hostil e os depoimentos do personagem nos transportam numa progressão emocional que passam pela esperança, abandono, solidão até à utopia de Acapulco, como os diretores dizem a Jean Claude Bernardet, em entrevista ao seu blog de maio deste ano. Como também revelado nessa mesma entrevista, Aïnouz e Gomes falam sobre o conceito principal de Viajo …, o abandono, que acaba sendo revelado na simbiose que ocorre entre Zé Renato, o sertão e os personagens que ele encontra. Como Pati, prostituta que representa o abandono ao mesmo tempo em que aplaca o abandono do protagonista e em que mostra a esperança de melhores dias.

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Viajo porque preciso, volto porque te amo não inova pura e simplesmente pela vontade de inovar. Todos os seus elementos criativos são empregados de forma a contribuir na narrativa. A captação das imagens em formatos diferentes (que foi realizada, em grande parte, antes mesmo do filme ter sido pensado da maneira como é) mostra a heterogeneidade de um diário (num diário de papel se utiliza fotos, desenhos, textos, etc.) e retira do filme a “aura de limpeza” que é normalmente resultante do uso de apenas um formato, especialmente se for 35 mm. A imagem ajuda a sentirmos não só esse álbum de colagens que é uma viagem e um diário, mas também quebra a perfeição técnica do longa, reflexo do momento de decadência pelo qual Zé Renato passa

Viajo porque preciso, volto porque te amo fala de um tema universal de maneira tão aparentemente simples que chegamos a nos impressionar com o pioneirismo do projeto. Porém, indo além da forma pela forma, o tema é incrivelmente bem trabalhado e envolvente, levando Karim Aïnouz e Marcelo Gomes a um posto privilegiado no cinema brasileiro e reafirmando o apreço da crítica nacional e internacional pelo cinema dos diretores.