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Publicado por em jan 31, 2017 em Notícias |

Porto Alegre vista no cinema

A programação de verão do Cine Santander prossegue nesta quarta-feira, 01 de fevereiro, exibindo Nós duas descendo a escada, filme de Fabiano de Souza e Milton do Prado que é uma declaração de amor ao cinema e à cidade de Porto Alegre. Na sessão com debate, ocorrida dentro desta Seleção de Cinema Brasileiro, os realizadores falaram ao público sobre o projeto desenvolvido ao longo de nove meses, entre 2009 e 2010, em que filmaram aos sábados e domingos a história de amor entre duas jovens porto-alegrenses. Com uma equipe pequena e a proposta de construção coletiva do roteiro, tinham como desafio incluir, em todos os segmentos, alguma cena das protagonistas em escadas da cidade. A ideia era buscar ângulos e aspectos de Porto Alegre vista em todas as estações do ano. O resultado pode ser conferido nesta quarta-feira, às 15h. Na sequência será exibido o filme O silêncio do céu, de Marco Dutra. Nós-Duas-Descendo-a-Escada-travessa 13 de maio

Sobre os dois filmes, reproduzimos textos do crítico André Kleinert, publicados em seu blog Anti-Dicas de Cinema, por ocasião dos lançamentos no ano passado.

Nós duas descendo a escada – 19/09/2016

Não deixa de ter algo de simbólico no fato de que Nós duas descendo a escada (2015) tenha estreado algumas poucas semanas antes do 20 de setembro, data de comemoração da “revolução” farroupilha. Na realidade, a efeméride citada serve muito mais para celebrar um certo “gauchismo” de viver, essa coisa bem bairrista a legitimar tradições e concepções preconceituosas. Nesse sentido, um filme como esse mencionado do diretor Fabiano de Souza se coloca bastante na contramão, ao trazer no seu amago um desejo de ser universal e libertário. Tal visão artística fica evidente na forma com que a cidade de Porto Alegre é retratada, numa abordagem que sugere um certo cosmopolitismo, não apresentando ranços regionalistas. Essa caracterização na ambientação da produção se correlaciona com a maneira com que o roteiro contextualiza a temática da homossexualidade, em que as noções de culpa e preconceito praticamente não dão as caras. Ainda que a trama tenha um viés principal intimista, a conjunção dessa humanista visão de mundo em relação a cultura e comportamento revelam um subtexto sócio-político sutil e contundente, além de colocar o filme em sintonia com obras contemporâneas marcantes dessa década como Azul é a cor mais quente (2013) e Boi neon (2015).

Em termos formais, Nós duas descendo a escada se estrutura em uma narrativa que evoca alguns clichês típicos de comédia romântica, mas que também são pervertidos por truques estéticos que remetem a algumas das principais obras da Nouvelle Vague e a uma série de referências e citações culturais (filmes, livros, música), além de trazer na sua encenação e em algumas situações do roteiro uma crueza de pegada realista. Essa síntese artística demora um pouco para dar liga, mas quando as coisas engrenam, principalmente a partir da primeira sequência de sexo entre as protagonistas Adri (Miriã Possani) e Mona (Carina Dias), a narrativa ganha uma fluência envolvente que ora diverte por algumas tiradas dos diálogos e sacadas da edição (o detalhe de usar manchetes de jornal como “marcação” do tempo é um recurso bem engenhoso), ora comove pela intensidade na interação entre as personagens principais. Como cereja do bolo, a ótima trilha sonora, baseada em temas de Frank Jorge e belas canções de artistas como Karina Buhr, Tulipa Ruiz e Arthur de Farias, pontua com sensibilidade a narrativa. Nesse conjunto de acertos, Nós duas descendo a escada reforça a ideia de coerência artística na filmografia de Fabiano de Souza, que conta ainda com outras produções marcantes como A última estrada da praia (2011), Os filmes estão vivos (2013) e Ocidentes (2014).

O silêncio do céu – 30/09/2016

Formatar um estilo autoral dentro do cinema de gênero parece ser a grande obsessão artística do diretor brasileiro Marco Dutra. Depois de enquadrar o horror num viés de crítica social em Trabalhar cansa (2011) e num bizarro trinômio família-religiosidade-loucura em Quando eu era vivo (2014), em O silêncio do céu (2016) o cineasta volta sua atenção para o suspense com fins de realizar uma contundente reflexão sobre a violência e o sexismo. Logo no início do filme, ele já afasta a trama de clichês recorrentes dentro do gênero em questão – mais importante para o protagonista Mario (Leonardo Sbaraglia) do que saber quem são os estupradores da sua esposa Diana (Carolina Dieckmann) é entender o contexto que levou a tal fato e também colocar em cheque suas fobias (inclusive aquela que impediu que ele fizesse algo para impedir o ato brutal que presenciou). Nessa perspectiva, Dutra constrói uma narrativa bastante atmosférica, valendo-se de uma eficiente narração de teor literário e uma encenação baseada fortemente na linguagem gestual e nos silêncios expressivos. A fotografia sombria e a elegante edição acentuam ainda mais a perturbadora aura de mistério da obra. Ao se aprofundar em sua investigação pessoal, Mario não se vê de frente apenas aos seus antagonistas, mas também diante dos desejos da sua mulher e de seus próprios medos e preconceitos. A vingança que engedra pode até inicialmente evocar algo de catártico, mas na verdade deixa claro a inevitabilidade de suas frustrações existenciais. Ainda que não tenha aquele genial clima de demência entre o desconcertante e o comovente de Quando eu era vivo, O silêncio do céu reforça o nome de Marco Dutra como um dos talentos mais expressivos a aparecerem no cinema nacional nos últimos anos.