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Publicado por em jun 9, 2016 em Artigos |

Ponto Zero e o não-lugar, por Ivonete Pinto


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Luiz Carlos Merten escreveu que Ponto Zero é um óvni no cinema brasileiro. Se é um óvni para o cinema brasileiro, muito mais ainda para o cinema praticado no Rio Grande do Sul. O objeto voador não identificado estreou no Festival de Gramado de 2015 e agora, com seu lançamento comercial, começa-se a lançar luz sobre a estrutura narrativa, sobre a gênese dos personagens e sobre o que os move. A fortuna crítica já é bem razoável e não faltam interpretações pertinentes sobre as metáforas, como as imagens envolvendo a água. Por isso, talvez, seja o caso de não mais vê-lo como algo tão estranho, mas como algo sem pai nem mãe consanguíneos no cinema local. De fato não é possível apontar que o filme tenha sido influenciado por este ou aquele diretor nacional, muito menos gaúcho. Ponto Zero está mais para Elefante, de Gus Van Sant (EUA, 2003), do que para Antes que o Mundo Acabe, de Ana Luiza Azevedo (RS, 2009). Ambos têm como mote os problemas que atordoam os adolescentes, mas só o americano apresenta um personagem central tão desnorteado, tão pouco confortável na sociedade em que vive, beirando o patológico. Ênio (Sandro Aliprandini), no alto dos seus 14 anos, parece não conseguir respirar, tal o grau de ensimesmamento.

No cinema brasileiro, Éden, de Bruno Safadi (RJ, 2013), ao menos no impressionante prólogo, carrega nas tintas do assombro através de imagens quase distorcidas, numa atmosfera de gênero próxima ao horror. Em outra metragem, há o curta que também foi exibido em Gramado, Enquanto o Sangue Coloria a Noite, Eu Olhava as Estrelas, de Felipe Poroger (SP, 2015), em que o filho de um coronel tipo nazista sofre bullying explícito e violento na escola e uma opressão doméstica idem. Já em Ponto Zero a violência cresce do latente para o manifesto.

E muito embora se possa cobrar mais verossimilhança na mãe (muito frágil) e no pai (muito rude), diga-se em sua defesa que é a partir do menino que temos esta visão dos pais e, portanto, se ela for deformada não se trata em absoluto de falhas de roteiro. Roteiro, aliás, que foi gestado por longos anos, tempo também utilizado pelo diretor para fazer filmes publicitários em grande escala, o que lhe dá uma expertise ao lidar com sets de filmagem e vantagem sobre quem está começando. Nota-se, com isso, que as ideias no longa são executadas com virtuosismo, as imagens são “limpas”, as intenções são claras (novamente a água funcionando como exemplo simbólico desses atributos) . Com isso não se aventa o lugar-comum de classificá-lo como “estética publicitária”. Diretores como Fernando Meirelles pagam alto preço por suas carreiras cinematográficas sempre associadas a esta estética. E lembremos que um Ugo Giorgetti também viveu da publicidade (vive ainda?) e seu cinema passa longe desta etiqueta. A beleza dos filmes de Giorgetti está na sujeira e no caos de São Paulo, no agudo comentário social e no baixo-orçamento que o faz inventivo. Goulart investe na beleza de imagens que pode render uma mente deslocada; nos tormentos existenciais de um adolescente que poderia estar vivendo em qualquer cidade. O inusitado em Goulart está em trazer a temática do desconforto existencial para um Estado que nos últimos anos (muitos últimos) vive uma pachorra. Não frequentamos o top 10 das bilheterias, não ganhamos prêmios significativos nos festivais, nem os filmes nos mobilizam com questões por ventura controversas. Em Gramado, logo nas primeiras sequências de Ponto Zero era possível dividir com colegas da plateia a sensação de que enfim surgia algo novo; pelo menos alguém estava arriscando falar de coisas diferentes, de um jeito diferente. A alegria pela surpresa, no entanto, deixou margem para incertezas que vêm crescendo desde sua estreia. Por ser sombrio, construído em cima de personagens que não promovem empatia, os números de bilheteria não nos permitem colocá-lo em patamares muito otimistas, principalmente considerando a carreira pífia dos filmes independentes no circuito exibidor. Sua participação em festivais (também foi exibido em Locarno em 2014), tampouco leva à euforia, apesar da feição moldada a este tipo de evento. Em Gramado ganhou dois kikitos, montagem e som, sendo ignorado injustamente pela crítica. De outro modo: sendo ignorado justamente pela crítica, aquela a quem caberia reconhecer seu valor.

Podemos abordar um projeto nas suas expectativas de investir no diálogo com públicos amplos e/ou ser avalizado pelos festivais. Não ir bem nas bilheterias e não receber prêmios expressivos em festivais não é determinante para a qualificação de um filme. Entretanto, se um filme é feito investindo em uma destas expectativas e não a alcança, tem-se um problema. Não sabemos qual era a ambição de Ponto Zero.

O que significa Ponto Zero para o cinema brasileiro? E para o cinema do Rio Grande do Sul? O filme parece ocupar um não-lugar, porém nos inclinamos a conjecturar em cima do que disse Roger Koza sobre um tipo de produção feita para festivais, que carrega vícios de linguagem inerentes. Uma espécie de estética domesticada nomeada pelo crítico argentino como “international style”. Neste sentido, Ponto Zero estaria emulando expressões do “international style”, onde personagens não falam, os planos são demasiadamente longos, ou aparentam longos devido à ausência de ação interna, e carregam uma dose de despolitização em seus enredos. Em Ponto Zero, a eficiente direção de arte (Valéria Verba) nos propicia enxergar uma classe média-média bem concreta, mas não temos um som ao redor que nos dê a percepção do contexto (som no sentido figurado, já que a trilha de Kiko Ferraz é sofisticada, sem deixar de servir à narrativa). Mostrar carros andando em marcha à ré apenas reforça o que já sabíamos sobre a mente em desalinho de Ênio. A reiteração de cenas que marcam o aturdimento desse personagem, por sua vez, reproduz o ritmo dos filmes do “international style”. Ênio não é um óvni, ele representa um bando de garotos e garotas que não acham seu lugar no mundo, que passam por nós nas ruas com suas franjas tapando o rosto, que estão nas nossas salas de aula, inclusive nas universidades. E é presumível que muitos adolescentes se identifiquem com o personagem. Porém esta tessitura “existencial” nos parece um tanto rasa se considerarmos que esta questão filosófica no âmbito da ficção surge com Dostoiévski , só que em seus personagens os conflitos da alma nunca estavam apartados dos conflitos externos, sociais. E é neste ponto que o filme de Goulart pode estar deixando uma brecha. Ok, temos o entorno do personagem bem desenhado (a família, a escola), mas onde se situa este entorno, que sociedade é esta? (a referência aqui não é geográfica, a cidade é reconhecível). Talvez, como hipótese, o peso do virtuosismo estético, em especial nos momentos de devaneio de Ênio, tenha apagado o contexto social-histórico e deixado o universo do filme num plano suspenso, num não-lugar.

Assim, ao mesmo tempo em que registramos o quão bem-vindo é um filme que pouco lembra a cinematografia nacional e nada se relaciona com os insossos filmes produzidos no Rio Grande do Sul ultimamente (salvo exceções no campo do curta-metragem), não nos furtamos em apontar uma certa dificuldade em enxergar este mesmo filme como algo potente em sua originalidade e espontaneidade estética. Ser diferente na nossa produção já é um mérito, mas não basta para destacar Ponto Zero num cenário mais amplo e exigente. Por fim, como nota de pé de página, cabe ressaltar que se este texto tivesse que ter “estrelinhas” de um a cinco, por certo que teria quatro. E é por conta da “estrelinha” a menos que as considerações de alguns dos parágrafos aqui foram feitas, problematizando temas que podem enriquecer o debate em torno do filme.