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Publicado por em mar 24, 2014 em Artigos |

O instinto selvagem da guerra (A Espiã, 2006)

por Adriano de Oliveira Pinto

06A Espiã, novo filme de Paul Verhoeven, permite ao menos duas leituras, bastante diversas entre si. Pode ser encarado como um (ótimo) thriller ambientado na II Guerra Mundial, e também revela uma face mais profunda do ponto de vista analítico, então surgindo como um pequeno estudo psicológico e social do ser humano, ao tratar de questões tais a identidade pessoal e a mudança de comportamento face à necessidade de sobrevivência durante um período de caos, como a guerra.

O filme resgata a pouco contada história da Resistência Holandesa na II Guerra, vista au passant pelo cinema americano, e em poucas oportunidades. Dois desses raros exemplos aparecem em Atraiçoados (1954), estrelando Clark Gable e Lana Turner, e a megaprodução Uma Ponte Longe Demais (1977), dirigida por Richard Attenborough, com um elenco estelar (Sean Connery, Michael Caine, Anthony Hopkins, Robert Redford, Laurence Olivier) – esta, abordando a fracassada operação Market-Garden realizada com o intuito de libertar a Holanda, tocava muito rasamente no tema. Verhoeven já havia dado sua contribuição ao subgênero com Soldado de Laranja (1977), e agora torna à questão, com maior ênfase inclusive.

A história se passa na Holanda, no período da ocupação nazista nos Países Baixos. Rachel Stein (Carice van Houten, de quem falaremos em detalhe a posteriori) é uma jovem cantora judia que tem a sua família dizimada a rajadas de metralhadora por uma patrulha fluvial da SS. Única sobrevivente da tragédia, Rachel se associa ao movimento neerlandês de resistência ao ocupante. Ela troca de nome (e também de cor do cabelo) para evitar a perseguição étnico-religiosa imposta pelo regime de Hitler, passando a assinar Ellis de Vries, e aceita executar serviços de espionagem em nome da causa guerrilheira. Recebe como difícil missão se aproximar de um influente militar alemão do alto escalão a fim de trazer informações necessárias a um plano de resgate de prisioneiros holandeses condenados ao fuzilamento. Só que Rachel/Ellis perceberá, a duras penas, que não é apenas ela a ostentar duas identidades: ao longo da trama, agentes duplos, mudanças de personalidades, emboscadas e traições revelarão que, em tempos de guerra, ninguém pode ser confiável, e, do ponto de vista individual, o instinto selvagem de sobrevivência em meio ao caos é o que fala mais alto – pilares das idéias que a película A Espiã defende.

Naturalmente, com as tantas reviravoltas que o roteiro oferece, é servido um filme adrenérgico, no qual o diretor não dá tempo para o espectador descansar, sempre mexendo com a platéia bem a seu modo, seja na ação, no suspense, na provocação, ou no olhar. E agora, mais do que nunca, Verhoeven valoriza cada gesto, cada objeto de cena, cada detalhe, ao mesmo tempo com um fervor de artista que conhece seu terreno e com uma polida precisão de engenheiro. Basta dizer que não há um plano do filme que se apresente como excedente, desnecessário: toda a gramática do cineasta em sua nova obra está a serviço de suas idéias, num aproveitamento soberbo de cenografia, atuações, planos e edição.

Porém, por qualquer dos prismas que se queira olhar, uma imagem figura em comum: é inegável que se trata de uma obra de Verhoeven. As características temáticas mais básicas de sua filmografia aqui novamente podem ser encontradas sem fazer qualquer força. São elas a violência, o sexo e a sordidez, tríptico ao qual poderíamos incorporar um quarto elemento: o choque causado pelas imagens (este, no mais das vezes decorrente natural de qualquer um, ou da soma, dos três anteriores). Embora a película flua por entre tais aspectos, em vários momentos eles se tornam mais pungentes, e o estilo verhoeveniano salta aos olhos. Afinal, no cinema de que outro cineasta poderíamos encontrar, juntas, tantas cenas inusuais, reunindo fuzilamentos, desenterro de cadáveres, mortes violentas, imundícies, nudez, humor negro e uma vingança que culmina numa das cenas mais agonizantes que o cinema poderia testemunhar? Mas não se resume apenas a isto a marca simbólica do diretor: é em uma homenagem – a mais escatológica possível – ao clímax de Carrie, A Estranha, e na transformação total de uma morena em loura (quem assistiu ao filme entenderá o porquê do grifo em itálico na palavra “total”) que a película clama seu realizador e a veia tão peculiar dele.

Uma das felicidades na escolha do elenco, Carice van Houten brilha no filme, mostra talento e beleza. Mais talento do que se esperaria, menos beleza do que se alardeou por aí. A atriz é capaz de segurar as cenas em que aparece com boa competência – e olhem que ela está presente quase o tempo todo na tela –, mostrando muita entrega ao papel e dotes extras muito bem-vindos, tal seu desempenho como cantora, sem qualquer necessidade de playback. Somente não é, esteticamente falando, a diva a qual alguns quiseram pintar como qual: resulta bela sem ser espetacularmente linda, lembrando um tanto de Miranda Otto (O Retorno do Rei) com um pouco de Jean Harlow – quando penteada e maquiada para isso, como aponta uma frase do próprio filme. Um gol de placa a favor da fita também está no seu roteiro, que coloca uma heroína como protagonista de uma obra de guerra, algo raríssimo: palmas para quem rompe paradigmas.

A Espiã marca o retorno do diretor em rodar filmes em seu país natal. Graduado em Matemática e Física, Paul Verhoeven obteve reconhecimento longe das Ciências Exatas, destacando-se como cineasta. Seu segundo trabalho em longas-metragens, o incendiário Louca Paixão (1973) – uma mistura desconcertante de elementos de Love Story e Laranja Mecânica com a mão única da quadra violência/sexo/sordidez/choque visual típica de que dissemos anteriormente – foi considerado, em escolha de há alguns anos atrás, como o melhor filme holandês do século passado, batendo inclusive os oscarizados (e excelentes) Caráter e A Excêntrica Família de Antônia. Após tal, o diretor enfileirou uma série de obras (Os Amores de Katie, Soldado de Laranja, Spetters e O Quarto Homem) que arregalaram os olhos dos produtores americanos. Seu cartão de visitas ao mercado estadunidense foi o contundente Conquista Sangrenta, em 1985, que lhe abriu portas para o seu sucesso em Hollywood representado pela trinca Robocop (1987), O Vingador do Futuro (1990) e Instinto Selvagem (1992), todos eles dispensando comentários acerca de seus êxitos junto à imprensa especializada e ao público. A derrocada veio com o fracasso retumbante de Showgirls, em 1995, fazendo com que Verhoeven fosse então visto com desconfiança. Isto prejudicou Tropas Estelares (1997) e O Homem Sem Sombra (2000), ambos interessantes mas incompreendidos. Após o retorno ao solo pátrio com o presente A Espiã, Verhoeven mostrou que não consegue ficar muito tempo longe de Hollywood: está prevista sua reestréia americana com a continuação de Thomas Crown – A Arte do Crime, ainda no final deste ano. Boa volta, Verhoeven, torne à Holanda quando quiser, e hartelijk dank!

Texto publicado originalmente no site Cine Revista em 13 de fevereiro de 2008. Texto de crítico integrante da ACCIRS já publicado em outro veículo da imprensa e autorizado para publicação no site da associação.

A Espiã (Zwartboek)
Direção: Paul Verhoeven
Roteiro: Gerard Soeterman e Paul Verhoeven
Com: Carice van Houten, Sebastian Koch, Thom Hoffman, Waldemar Kobus, Halina Reijn, Dolf de Vries e Derek de Lint
País de produção: Holanda/Alemanha/Bélgica
Ano de lançamento: 2006
Disponível em DVD no Brasil
Duração: 145 minutos