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Publicado por em mar 25, 2014 em Artigos |

O cinema do segredo e do crime (Sobre Alfred Hitchcock)

por Enéas de Souza

07Temos em Alfred Hitchcock a criação do espetáculo para encarar o Horror, a Ameaça, que é insidiosa, e que vem, em Os Pássaros, da passagem metafórica de periquitos (Love Birds) para aves cada vez mais ameaçadoras, uma metamorfose, um translado, que finda com a plumagem da mais negra escuridão. Numa palavra: o triunfo dos corvos. E dos corvos que dominam – cena final – todo o espaço do cenário, por extensão, da catástrofe, do mal, da destruição, dominando o mundo. Mas Hitchcock não é um homem que prega declaradamente o catastrofismo. Ele mostra o desastre envolto em cores palatáveis, a densa construção da arte em tempos do espetáculo; só que, para ele, o espetáculo assume a natureza crítica. É espetáculo mais Guy Débord, é espetáculo mais juízo de valor. E avança, como uma seda inquietante sobre a visão do francês, porque trabalha com o estranho e com o mal-estar da cultura. E olha de frente as mudanças da sociedade contemporânea, sempre vista pelo lado antropológico, sem deixar de iluminar o estranho e o mal-estar com o rico colorido contemporâneo. Ou seja, é um homem que filma o abismo, mas filma, por uma torção dinâmica do espírito, a aventura no abismo. Com isso, sem deixar de ser metafísico, sem deixar de trabalhar com o tema do Grande Outro, filma a animação e o desespero dos homens como formigas diante da inexistência de Deus. Seu cinema recolhe num primeiro estágio a imagem realista e normal do cotidiano, para chegar, sob o impacto do de repente, à nebulosa da imagem cruel e plena de dor, à imagem das trevas (através de um uso fortemente presente do fora de campo, da outra cena, que se infiltra, num conflito do visível e do invisível, no campo cinematográfico). E, no meio da escuridão, no clima de imenso terror, renasce a luz da esperança, Cathy (Verônica Cartwright) consegue levar os periquitos para a saída da casa, é a nuance do Amor no bojo do Ódio.

Hitchcock é o cineasta do olhar, do olhar do objeto, e seu filme nos concerne e nos envolve, nos instiga e nos provoca, nos mete medo e nos vocifera, nos paralisa e nos aplaca e, igualmente, nos estimula. Porque, antes de tudo, para ele, filmar é dirigir espectadores. Sim, Hitch quer dirigir suas emoções, quer propiciá-los a ver o abismo, a ver o desastre, o distúrbio. Olhar o abismo tem o dom de colocar os humanos no estado de humildade, uma prova saudável do gesto, como se isso os acalmasse, como se isso fosse uma cura para a vida. Tudo porque para ele o elemento fundamental é o suspense. O suspense é a previsão do desastre. E sua astúcia é fazer o público saber que o desastre vai acontecer. Há, portanto, a encenação da fatalidade. Trata-se pelo suspense de parar o tempo e armar o instante fatal. E embora o seu filme tenha aparências de melodrama, no íntimo, tem um segredo, ele é uma tragédia. Ou seja, há uma seta que viaja durante o rio da narrativa, que atravessa o fio da história e que se pode chamar de irreversibilidade dos acontecimentos. As aves ameaçam atacar, já atacaram – e atacam compulsivamente. Ou seja, Melanie (Tippi Hedren) traz a peste de São Francisco à Bodega Bay. Ela existe como se fosse inspirada por aquela frase hipotética de Freud a Jung, chegando aos Estados Unidos: “Eles não sabem, mas trouxemos a peste”. No caso dela, Melanie Daniels, há uma nuance, ela de fato não sabe, mas trouxe e carrega a peste, como Édipo a Tebas, sob a forma aparentemente positiva, dos periquitos que se transformam nas aves, cada vez mais estridentes e ambiciosas, que bicam a todos, devorando aquilo que é fundamental para existência do homem no mundo, o olhar.

(Um parêntese: todos os filmes, direta ou indiretamente, falam sobre o cinema. E Hitchcock nos diz que o cinema é a imagem do olhar que nos é dado como impossível. O olhar da morte. E é a morte que nos enxerga sempre, só que, em Os Pássaros, ela emerge no rosto sem olhos dos cadáveres, nos mostrando o horror e o terror. Que magnífica cena, em “jump-cuts”, da mãe de Mitch vendo o corpo morto e sem olhos, de Dan Fawcett, o fazendeiro, de volta, olhando-a! Aproveitamos esta passagem para dizer que Hitchcock trabalha a mesma idéia de Rilke: a beleza é o quanto se pode suportar do horror. (Não é assim também a psicanálise?) E o cinema é então a peste na imagem, que introduz a escuridão da morte na filmagem colorida e luminosa de uma provável história de amor. Se trata de mostrar e dar a ver a catástrofe, e não a liquidação do homem e da mulher e do gênero humano. A ficção e a imagem hitchcockiana aportam o estranho e o mal-estar, e a resposta do artista. Ou, dito de outra forma: a cesta de imagens de Hitchcock tem, diante do horror, a invenção e a criação do cinema. E esta energia flui através dos planos e das seqüências, da intriga e das cenas. Vale um sentimento de vitalidade, embora as sombras estejam sempre perto de nós.)

Hitchcock percebe que a tragédia é algo de que as pessoas não querem falar, tratam de descartá-la, excluí-la, como o policial que não acredita no ataque das aves. Vivemos numa sociedade do espetáculo, da imaginação do brilhante, da fulgurância dos objetos do consumo. E os filmes de Hitch, mais dentro do imaginário contemplado pela psicanálise e do fetichismo da mercadoria, impossível. Só que eles incendeiam o coração dos espectadores pela sua opção narrativa apolínea, ou seja, os seus filmes partem do fulgor. É a exuberância do luminoso. Para dar consistência à pele da luz, por si só fugaz, inclui de forma excitante e tisnada da angústia, a carnalidade da aventura, da aventura do cotidiano. E aí sim, inocula um vírus, seu nome é suspense, do qual já falamos, uma espécie de verme que vai comendo a emoção do espectador. Brota desta operação o gênio: a trama que vem para contar a tragédia. Mas a tragédia, ao negociar com os humanos, joga de mão, dá as cartas e ganha sempre. No entanto, a aventura desta partida perdida, que o suspense nos leva a apostar, nos dá a glória do efêmero, da duração que treme, da intensa paixão do instante. Promove este tom a energia que o jogo da ficção de Hitchcock requer, porque a aventura se afeiçoa ao movimento, apressa o combate e inflama a luta. Temos, então, a trajetória das ações na quase paralisia da ameaça que o suspense pretenderia. Espernear como um inseto à morte, mas viver como um vôo no imaginário e no simbólico, é a proposta de Hitchcock para enlaçar o suspense e a angústia. E daí o seu convívio com a contemporaneidade, sobretudo com a psicanálise.

II

A direção de Hitchcock trabalha em cima de um roteiro bem organizado, ele constrói um mundo, um universo. Não é por outra razão que Godard nos diz que Hitchcock teve êxito onde fracassaram Alexandre, Julio César e Napoleão, pois tomou o universo para si como construção aparentemente mimética, mas fez um mundo para demonstrar sua marca. Para tal, Hitchcock atravessa a cultura do seu tempo, na sua mais ampla extensão. Se não, olhemos para esta história de Os Pássaros. Ela é sutil, joga em vários planos. Mas ao menos dois se evidenciam: a questão da família e a questão do futuro da sociedade. Ficando apenas na primeira, claro que percebemos que o cineasta avança na encenação de uma arquitetura que envolve Pai, Mãe, filho, filha, e aquilo que trata do básico na questão das relações humanas: o amor. Tudo isso com a força de um Édipo olhado pelo lado de Jocasta, a imaginária fúria desta diante do novo amor de Édipo. Mas, a pergunta se impõe: isso tem interesse cinematográfico?

Tem, mas não exatamente no ardil psíquico. Pois, o que exala apelo no cinema é outra coisa. É como esta relação exibe a cólera da Mãe numa determinada forma. O que importa no cinema é a estampa que assume todo o universo, e por mais que esqueçamos da história, jamais esqueceremos da imagem. Temos a evidência maiúscula: a abundante e malvada visibilidade/invisibilidade dos pássaros que ocuparam todo o lugar onde se desenrola a ação. E por isso, nesse nível da família, a construção da fragilidade existencial da Mãe, somada a sua fortaleza imaginária, nos dá a tempestade das aves, o vulcão de seus bicos dominando a todos. Hitchcock nos desenha uma Mãe alerta à invasão da sua área, manobrando para conservar o filho sob a sua alçada, com o Pai morto, apenas um retrato na sala de jantar. E, ao mesmo tempo, ela busca a exclusividade do próprio espaço, servindo-se para isso de um ataque fantasmático diante de um possível marido, Dan Fawcett, e de uma candidata ao amor de seu filho, Annie Hayworth (Suzane Pleshette), a antecedente de Melanie Daniels. E sua raiva é mortal, do tamanho do mundo, divina, vem dos céus e incide inclusive sobre uma das condições do ser humano, o olho com o seu olhar. Esta ira devora a existência do órgão para destruir a função. E chegamos ao ponto máximo do gesto de Jocasta, quem paga a conta do Édipo, além dele, é a aspirante do seu amor, a filha submissa. (Olhe-se a cena final, Melanie, ainda tonta do último ataque, pousada nos braços de Jocasta, perdida para sempre).

Hitchcock joga nessa temática e ganha. Como? Não se trata de um caso psicanalítico. Parodiando Lacan, estes homens e estas mulheres são seres em imagem. O que importa na tela é, então, como esta trama é in-formada. A face da tragédia contemporânea não é a palavra como no teatro clássico, mas sim o exercício da construção da imagem. Precisamos ir adiante: vamos ao cinema para assistir a uma história de relações familiares, só que ela emerge conjuntamente com um outro tema que envolve o destino de toda a sociedade, a questão do seu iminente futuro, o ataque dos pássaros e das aves, desde gaivotas até corvos. Ora, há um entrelaçamento entre o caso de Melanie Daniels e a família Brenner com o fato raro e inusitado da vingança ornitológica, de uma crise ambiental. Com essa observação, nos adiantamos mais um pouco: o cinema como arte não é um lugar de caso clínico, e muito menos da defesa de uma causa social. O cinema é um pensar em imagens. Desta forma o filme se desloca para uma outra perspectiva, os personagens são envoltos em outro nível, não mais a questão familiar, mas assumem uma conexão, um enlace social profundo. A fúria que era da Mãe familiar, aqui está ligada a resposta da Natureza, também metaforicamente chamada de Mãe, aos homens, a agressão dos humanos.

Mas, o gesto não vem ligado a um convencionado discurso ambiental. O universo é mostrado na sua dinâmica, em estado de mudança, no caso, já em estado de revanche, em estado de Ameaça e de Perigo e de Ataque. E nesse instante, o que se manifesta exibe a idéia de que os homens nunca olham o fundo das coisas, que enxergam apenas o imediato, o leve rumor das percepções. Qual é a causa dos ataques dos pássaros? Não se apercebe o fundo do mundo, a pulsão de destruição humana, que corre para a natureza. Vê-se apenas que depois da chegada de Melanie Daniels é que começaram a eclodir os ataques. A miopia da inteligência e das emoções primárias conclui pela proximidade, o que está à mão, como o princípio de tudo. O que se expõe no filme é a re-inversão aguda da causa. E olha-se a configuração de um episódio, o ataque das aves, que acontece pela volúpia de uma desordem que está oculta por toda parte, e se diz: foi o estrangeiro, foi a estrangeira. Foi Melanie Daniels – como fala a mulher apavorada do restaurante. O que mostra como os habitantes de Bodega Bay – nós! – estão perdidos num imaginário paranóico, não reconhecendo o substrato da América e seu “american way of life” nesse universo dramático.

Porém, o nosso interesse cinematográfico é mostrar que um filme antes, de mais nada, é uma visão, é um dar a ver um universo, onde se desvenda, pensando em imagens, o outro lado das percepções, o desvelamento da mancha na luva de Melanie. Não é importante tratar o tema sob forma de argumentos, de idéias encadeadas, fazendo um discurso político ou filosófico ou psicanalítico. O cinema é narração, é tempo – Rohmer diria que é espaço –, uma imagem após a outra, uma imagem que se estrutura como um pensar. E quando se trata de cinema ficcional, as imagens e os sons vão definindo um ponto que se avulta e se sintetiza na história – a brutal hegemonia dos pássaros negros. A imagem que o artista vai consolidando, uma forma que trás “o fundo das coisas”, como diz Godard. Este fundo das coisas é o que Freud dizia como Lacan: o artista desassombra a dianteira descortinando novas realidades. Aqui o complexo de Édipo está vinculado ao declínio da função paterna, a ascensão da mulher, mas igualmente ao entrelaçamento da família e da sociedade. Por isso talvez Helène Cixous tenha alguma razão em dizer: “A família é o teatro do segredo e do crime”. E o teatro é uma construção psíquica e lingüística, social e política. Mas talvez pudéssemos dizer um pouco diferente, que a família é hoje, na atualidade da história, o cinema do segredo e do crime. Pois a idéia de cinema mais do que a idéia de teatro, agora, talvez esteja mais próxima, materialmente (porque imagem), do especular, do simulacro, do fantasma, do sonho e do pesadelo, os nossos companheiros habituais de sempre. E não é bem aí que se estabelece uma passagem vizinha, uma passagem lindeira, quase uma conexão, que se desenvolverá, desde o começo, com a psicanálise, nascida irmão/irmã da Sétima Arte?

Artigo publicado originalmente no informativo da Associação Psicanalítica de Porto Alegre em abril de 2007. Texto de crítico integrante da ACCIRS já publicado em outro veículo da imprensa e autorizado para publicação no site da associação.