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Publicado por em mar 23, 2014 em Artigos |

Imigração e imagem (Caché, 2005)

cachePor: Adriana Androvandi

Um dos problemas de nossos tempos é a crise de políticas imigratórias de diversos países da União Européia e dos EUA e a forma como suas sociedades tendem a creditar seus medos crescentes a estrangeiros e refugiados. O filme Caché, do alemão radicado na França Michael Haneke (França/Áustria/Alemanha/Itália, 2005), além de abordar diversas questões da contemporaneidade, como a onipresença da imagem, fala da situação de tensão entre imigrantes, representados pelo personagem de Majid, e de cidadãos tradicionais europeus, com o protagonista George. O longa-metragem foi lançado nos cinemas do Brasil no primeiro semestre de 2006, distribuído pela Califórnia Filmes e está disponível em DVD. filmes anteriores do mesmo diretor já lançados no Brasil são Violência Gratuita (1997), Código Desconhecido (2000) e A Professora de Piano (2001), sendo que destes o que também enfoca a questão dos imigrantes é Código Desconhecido, que parece ser um prelúdio do tema que o diretor trataria anos depois em Caché.

Pode-se dizer que seus filmes apresentam personagens atormentados, que não raro pagam o resultado de um processo histórico de longo tempo, que teve início com o período colonialista e chegou à era da globalização. O autor e pensador John Sinclair discorre sobre o conceito de globalização. Ele destaca que alguns investigadores sustentam que a colonização da América, a partir de 1942, seria o marco inicial da globalização “real” como fenômeno histórico. Desta forma, a globalização seria uma conseqüência da expansão da cultura européia através do planeta.

Ainda segundo Sinclair, a palavra “globalização” já era usada na língua inglesa desde os anos 60, mas é a partir dos anos 80 que começou a ser amplamente usada pelos meios de comunicação, pela economia e pela política. Nos anos 90, virou a ordem do dia.

Com mudanças ao longo do tempo, em especial na década de 80 e 90, fatores são analisados por Sinclair como parte da alteração do contexto mundial a partir destas duas décadas:

– O surgimento de uma “Nova Ordem” Mundial com o fim da Guerra Fria, quando se intensificaram as relações econômicas, políticas e culturais entre os países.

– Com a derrocada do bloco socialista, houve um incremento no fluxo de pessoas através das fronteiras.

– Ascensão da ideologia e da política do neoliberalismo (nos anos 80, o neoliberalismo se consolidou em países como Estados Unidos, com a era Regan, e a Grã-Bretanha, com a era Tacther). Conceitos como privatização e desregulamentação afetaram os meios de comunicação.

– A chegada do pós-modernismo clamou por liberdade. Depois do absolutismo das ideologias em ambos os lados da Guerra Fria, se pôde criticar as “grandes narrativas”, como o marxismo (Sinclair, 2000, p. 69).

Dentro deste contexto, Caché (“escondido”, em francês) se mostra bastante instigante, porque todo seu ponto de conflito está entre um francês tradicional e um filho de imigrantes argelinos. A trama transcorre em Paris, apresenta um intelectualizado casal de classe média, Anne e George, interpretados respectivamente pelos atores Juliette Binoche e Daniel Auteuil, que começa a receber fitas de vídeo e desenhos ameaçadores em sua casa. George desconfia que por trás de tudo possa estar o filho órfão de argelinos que foi adotado por seus pais quando ele era criança, e que o protagonista usou de uma determinada e cruel estratégia para que o adotado não fosse aceito por seus pais. Fazendo uma livre interpretação do título, “escondido”, pode ser interpretado tanto em relação ao que o personagem principal fez no passado e não contou a ninguém, quanto à tensão latente que existe quando se toca no tema dos imigrantes na Europa, nas revoltas “escondidas” ou contidas que podem vir à tona a qualquer momento.

Com o aumento do fluxo de pessoas pela Europa, as migrações têm gerado diferentes reações. Haneke toca, através do microcosmo de uma família, em um destes pontos de conflito mais tensos da atualidade – exibe uma França invadida por imigrantes. Além disso, também aborda a exposição de quem trabalha na mídia, como no caso do protagonista, um apresentador de um programa de debates literários na TV. Focando em personagens da classe média, a filmografia de Haneke também é bastante interessante em sua técnica de roteiro e edição, desde a primeira cena do filme: por vários minutos, uma câmara fixa apresenta a frente de uma casa, onde familiares entrando e saindo pelo portão ou um carro passando são os únicos movimentos que aparecem. Iniciar um filme desta forma, num período em que o espectador mediano está acostumado à linguagem frenética da TV, da publicidade e do videoclipe, já mostra que o diretor parece desafiar esta montagem acelerada usual. Nas cenas seguintes, se percebe que, na verdade, as cenas iniciais são “um vídeo dentro do filme”, já que o casal protagonista está repassando uma fita de vídeo que recebeu na sua porta e que apresenta, justamente, a frente da própria casa. Desta forma, eles percebem: “estamos sendo vigiados”. Só depois de alguns minutos a platéia no cinema se dá conta de que está vendo um vídeo que se passa dentro da história do filme.

O protagonista, George, está, literalmente, sendo ameaçado por imagens. George se lembra, então, do passado, que traz à sua mente a imagem de Majid, filho de imigrantes argelinos. Quando eram crianças, Majid ficou órfão e foi adotado temporariamente pelos pais de George. Os pais de Majid haviam morrido durante um protesto contra a política colonialista do governo francês, em Paris, no ano de 1968. George, que era filho único, não gostou da adoção e fez com que o adotado cometesse um ato assustador na granja onde moravam. Depois disso, os pais adotivos resolveram rejeitar a criança adotada e a enviaram a um orfanato.

Fazendo uma comparação, muitos imigrantes e seus descendentes são forçados a viverem em espécies de guetos, ainda que sonhem com uma noção de comunidade que lhes dê mais segurança em uma cultura que não lhes é a original. A questão social está neste confronto de grupos. De um lado os marginalizados, os imigrantes de países pobres e seus descendentes, excluídos por motivos como pobreza, falta de educação e de oportunidades, discriminados por suas raças e culturas diferentes, e a sociedade dita tradicional européia, que tem acesso a bens de consumo, a bons empregos e à cultura. Estes guetos vivem jogos de tensão, mas há pontos de intersecção, onde, por mais que se evitem, é impossível que não convivam. A esfera de suspense é utilizada para abrigar esta crítica. Leva em conta a abordagem de questões antropológicas da era da globalização, iniciadas com a colonização: como o ser humano lida com o diferente, como reage ao ser ameaçado em seu status quo, como as tensões sociais estão latentes e como as diferentes gerações lidam com isso.

O protagonista do filme se torna um homem inseguro, com dificuldades de manter suas relações frente a um mundo onde reações do passado e do presente não são mais possíveis de conter. O tema social que é destacado em Caché, como os problemas de imigração, que são perceptíveis na realidade, visto que pôde-se conferir no caso das revoltas em periferias de Paris por parte de jovens filhos de imigrantes que reclamavam por chances de trabalho e aceitação social, em manifestações que acabaram em incêndios e depredações em novembro de 2005 e foram amplamente noticiadas ela mídia. Nas eleições para o atual mandado do presidente da França, Nicolas Sarkozy, no ano passado, e no mês de julho de 2008 para presidente da União Européia, ocorreram freqüentes protestos de opositores contra sua política considerada rígida para com os imigrantes. Neste ano, como mais um exemplo, vários brasileiros foram barrados nos aeroportos da Espanha, impedidos de entrar no país, mesmo universitários e mestrandos que comprovaram que iriam participar de seminários educacionais. É perceptível, portanto, que Haneke dispõe de problemas que estão no imaginário não apenas francês, mas europeu, entre eles a questão do cidadão tradicional se sentir ameaçado pela imigração dos povos de países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento.

Dentro desta questão, também há uma cena no filme que gera uma interessante interpretação. O protagonista, quando criança, manipula o irmão adotado a matar um galo na granja onde moravam. Depois daquilo, o adotado aparece todo ensangüentado perante os pais adotivos, que se assustam com aquela atitude e o mandam para um orfanato. Vale ressaltar que o galo é um símbolo nacional francês e está, inclusive, estampado nas camisas da seleção nacional de futebol. Seu signo é, portanto, muito forte na França. Desta forma, se pode fazer a seguinte leitura: o cidadão francês tradicional (no caso o filho legítimo) induz o adotado (imigrante) a realizar um ato que causa prejuízos à comunidade e é reprovável perante a sociedade (os pais), o que o faz ser ainda mais rejeitado. Fazendo uma relação com os protestos de jovens descendentes de imigrantes que depredaram a periferia de Paris: a sociedade tradicional não lhes fornece emprego ou dificulta seu acesso aos estudos devido à sua origem. Quando se rebelam como única forma de serem ouvidos, o ato serve para reforçar ainda mais o discurso daqueles que lhes são contrários, acusando-os de serem baderneiros e de estarem invadindo seu país e atrapalhando a “ordem” social. É, enfim, uma forma de rejeição. No caso do filho legítimo, talvez seja autopreservação, ainda que bastante perversa.

Em Caché, há ausência de trilha sonora. Suas opções pelo silêncio tornam-se também significantes que representam muitas vezes ausência ou incomunicabilidade. Por fim, torna-se um elemento a mais na composição da inquietude da narrativa, completando um mosaico provocador.

A montagem é outro diferencial do trabalho do cineasta, em especial em Caché. Pesquisando sobre a vida do diretor, se vê que ele tem uma extensa lista de trabalhos para a televisão. É interessante observar, portanto, que seus filmes apresentem uma linguagem tão diferente da televisiva. Usa sem pudor planos longos, ritmo lento, freqüentemente finais abertos, num contraponto perceptível à linguagem da TV, onde a cada 30 segundos se tem um novo comercial, o silêncio é praticamente impensável e as histórias têm de apresentar todas as suas explicações até o final. Em alguns casos, as cenas de Haneke são tão longas e paradas que o diretor parece estar testando sarcasticamente a paciência do espectador, como a cena com câmera fixa que grava os vídeos chantagistas já na abertura de Caché. Mas, por fim, esta linguagem aumenta a tensão da trama, quase comparando-se a uma cena do filme: a do protagonista que entra em um elevador lotado tentando fugir do filho do imigrante; mas o jovem consegue entrar e o encara firmemente. O silêncio, neste caso, é tão constrangedor quanto a situação de ser observado ininterruptamente. E aí entra outra questão genial deste longa-metragem: a onipresença da imagem, seja na TV, nos vídeos domésticos, na capacidade de hoje se gravar cenas secretamente, por haver câmeras de pequeno porte por toda a parte (como as câmeras de segurança e celulares) e, por conseguinte, se vive com a constante possibilidade de perda de privacidade. A imagem capturada mecânica ou eletronicamente é um elemento constante em nossa cultura, com usos distintos, que vão do legal ao ilegal, conforme quem detém a câmera e o material com ela obtido.

O estilo minimalista de Haneke evita efeitos especiais. Prefere o naturalismo também nos figurinos e maquiagem. Enfatiza o trabalho dos atores, provável herança do período em que trabalhou com teatro. Talvez seja esta a sua proposta: se permitir experimentar no cinema, sem se sentir limitado ao formato da TV, ou justamente confrontá-lo. Sua proposta, ao contrário de propor uma fantasia, prefere ir ao encontro de questões reais. Isso parece se completar com a frase dita pelo próprio diretor em entrevista no site Zetafilmes: “Uma forma de arte está obrigada a confrontar a realidade, a tentar encontrar um pequeno pedaço da verdade”. Parece ficar claro que o cineasta espera que seus filmes não sejam uma fuga da realidade, apesar de declarar que não tem nada contra isso e nem contra o sistema mainstream, mas prefere que seus filmes sejam um “encontro” com questões reais.

Neste sentido, o protagonista de Caché é vítima de uma chantagem por um ato que fez no passado contra um órfão de imigrantes, em última extensão resultado de uma política colonialista que gera conseqüências até hoje na França. Mas também parece ser um sujeito que se dissolve em jogos de linguagem: ele é, aparentemente, descoberto pelo seu possível chantagista através da sua exposição na tela do seu programa de TV, é ameaçado através de imagens e estas acabam por alterar seu status quo. Por isso, o filme aborda não apenas questões políticas e sociais francesas, como fala da onipresença e da onipotência da imagem no mundo de hoje.

O filme não apresenta um conclusão tradicional, no sentido de um ponto final sobre o problema. Aliás, mostra o contrário, que os conflitos entre imigrantes e cidadãos tradicionais continuam. Na última cena, o descendente mais jovem de argelinos vai conversar com o filho da casal parisiense. Serão gerações, enfim, que terão de conviver. É um processo irreversível, ainda que a Europa viva entre a vontade se “entricheirar”, de defender seus territórios e seus povos, mas também de se abrir ao mundo quanto às questões políticas, culturais e econômicas. É um jogo de forças que parece estar longe de chegar a um equilíbrio ideal e que Haneke conseguiu abordar com maestria.

Caché recebeu várias premiações. Entre elas: quatro prêmios no European Film Awards, nas categorias melhor filme, melhor diretor, melhor ator (Daniel Auteuil) e melhor edição, além do prêmio ecumênico do júri, o de melhor diretor e o prêmio FIPRESCI no Festival de Cannes. Mais do que diversão, é um filme para reflexão.

Caché
Direção: Michael Haneke
Roteiro: Michael Haneke
Com: Daniel Auteuil, Juliette Binoche, Maurice Bénichou, Annie Girardot e Bernard Lê Coq
País de produção: França/Áustria/Alemanha/Itália
Ano de lançamento: 2005
Disponível em DVD no Brasil
Duração: 117 minutos