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Publicado por em mar 24, 2014 em Artigos |

Entre paixão e amizade (Cidade Baixa, 2005)

por Adriano de Oliveira Pinto

01Cidade Baixa, estréia em longa-metragem do diretor Sérgio Machado, trata da história de um triângulo amoroso envolvendo dois amigos fraternais que vivem de trampos e golpes (os ótimos Lázaro Ramos e Wagner Moura, dois dos melhores atores da novíssima geração do cinema brasileiro) e uma stripper (Alice, sobrinha de Sônia Braga, em grande desempenho) que se interpõe entre eles. O cenário dessa ciranda amorosa é, na maior parte das vezes, a zona portuária de Salvador, nos dias atuais. Dados tais personagens e ambientação, temos ingredientes para uma trama pontuada de um intenso naturalismo. Não necessariamente o naturalismo de Zola, mas um bem tropical, mais próximo de nossos Aluísio de Azevedo e Julio Ribeiro.

Desta forma, Cidade Baixa parece um filme-tese. E ele o é, de certa maneira, embora não seja originalmente concebido para sê-lo, pois como seu diretor afirma, acima de tudo trata-se de uma história de pessoas, essencialmente humana. Em suma, tal película vai além de sua motivação inicial, o que por si só já constitui motivo de interesse. No mergulho que ela proporciona pelo peculiar universo da periferia retratada, com seus típicos personagens e a realidade sócio-econômica que circunda estes, há sobretudo um forte e inquietante romance a três que representa a mola-mestra de praticamente todos os eventos ali narrados. Um triângulo que é o epicentro de todos os bons terremotos dramáticos do enredo.

Vê-se algo que é pouco convencional no cinema em Cidade Baixa: como um fractal, que guarda nas partes menores a sua estrutura como um todo, a obra é repleta de cenas-síntese que exalam a sua essência, sendo impossível definir uma única como peremptória. Qualidade rara e feliz.

Uma das grandes metáforas visuais do cinema brasileiro recente se encontra neste filme. Deco e Naldinho, amigos quase que irmãos sangüíneos, em dado momento brigam violentamente pelo amor de Karinna (a qual, ao longo de toda a trajetória, não se decide especificamente por um deles), e depois por ela são simultaneamente cuidados das múltiplas lacerações faciais que um causou no outro. O sangue dos dois rapazes se mistura numa bacia d’água onde Karinna lava a toalha que enxuga os ferimentos deles. Ali, é como se um só sangue os unisse, fraternal e univocamente, pelas mãos da mesma mulher que os separa. A cena que se segue a esta nos leva da perplexidade à angústia em segundos. A poesia emerge inclusive das fontes mais brutas, nos diz a câmera de Sérgio Machado, entre tantas outras coisas.

Os deveras pudicos poderão atacar a abundante linguagem chula e as intensas cenas concupiscentes que permeiam a fita, mas estas representam parte fundamental do realismo pelo qual Cidade Baixa prima e sem as quais tudo soaria implacavelmente falso. Também os mais ávidos por finais objetivos, bem delineados, podem ficar incomodados e insatisfeitos com a conclusão aberta e elíptica da obra, porém é esse estímulo à mente do espectador algo que faz muita falta no cinema de nosso tempo, lacuna aqui preenchida com laudabilidade.

Artigo originalmente publicado no site Cine Revista, em 2005.Texto de crítico integrante da ACCIRS já publicado em outro veículo da imprensa e autorizado para publicação no site da associação.

Cidade Baixa
Direção: Sérgio Machado
Roteiro: Karim Ainouz e Sérgio Machado
Com: Alice Braga, Lázaro Ramos, Wagner Moura, Dois Mundos e José Dumont
País de produção: Brasil
Ano de lançamento: 2005
Disponível em DVD
Duração: 98 minutos