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Publicado por em mar 23, 2014 em Artigos |

As origens do espetáculo cinematográfico em Porto Alegre

recreio_ideal (*) Historiadora, doutoranda em História pela UFRGS, onde finaliza tese sobre o tema

A coincidência temporal entre a criação da primeira associação de críticos de cinema do Rio Grande do Sul e o centenário da primeira sala permanente de exibição cinematográfica da Capital (e possivelmente do Estado), o Recreio Ideal, em 2008, é significativa. Afinal, a regularização da atividade exibidora no mercado local, a partir de 1908, proporcionou aos porto-alegrenses uma oferta estável de programas cinematográficos, consolidando a prática de ir ao cinema entre as suas opções cotidianas de lazer e propiciando, assim, o estreitamento da relação entre espectadores e filmes, condição do desenvolvimento da reflexão crítica sobre o cinema e seus produtos.

Esta experiência, no entanto, foi se constituindo desde que os porto-alegrenses se depararam com as vistas de perspectiva (1841), que reproduziam imagens de cidades européias e fatos históricos e podiam ser observadas com efeitos de profundidade e relevo através das oculares de caixas ópticas. Ao menos desde 1861, imagens representando estas e outras temáticas também passaram a ser apreciadas localmente, mas de forma coletiva, em salas escuras, sobretudo no Theatro São Pedro, onde eram projetadas em tamanho ampliado por prestidigitadores e ilusionistas que buscavam incrementar os seus espetáculos com novas atrações. Esta tendência se intensificou na década de 1880, quando surgiram as primeiras companhias de variedades, que também diversificaram os seus espetáculos integrando os aparelhos de projeções ópticas e suas espetaculares imagens coloridas.

Foi no contexto dessa complexa e rica cultura visual, dinamizada por um grande fascínio pelos jogos, truques e aparelhos mecânicos desenvolvidos em torno das possibilidades de iludir o olho, que nasceu o cinema. O fato é que antes da sua invenção sucessivas gerações de porto-alegrenses, de diferentes faixas etárias e categorias sociais, foram atraídas a locais públicos e pagos em busca de um gênero de entretenimento fundado na projeção de imagens do mundo real ou imaginário. Nesses espetáculos, as pessoas encontravam diversão e informação, ampliando os seus horizontes e a sua memória visual. Em outras palavras, não foi o cinema que forneceu os primeiros passaportes para que as pessoas pudessem “viajar sem sair do lugar”.

O “cinematógrafo” foi exibido pela primeira vez em Porto Alegre em novembro de 1896 por Francisco De Paola/M.J. Dawis e Georges Renouleau, demonstradores que alugaram e adaptaram salas para projeções na Rua dos Andradas, entre as ruas General Câmara e Caldas Jr., na mesma quadra onde abriram, em 1908, as primeiras salas de exibição permanente da cidade. As “fotografias animadas”, isto é, os primeiros filmes, ali ficaram em “exposição” por quase um mês, sendo apreciados como produtos de uma nova técnica de reprodução de imagens que proporcionava uma nova experiência sensível. A divulgação dos cinematógrafos pela imprensa da época entre as opções de diversão demonstra a percepção dos contemporâneos acerca destas projeções como a mais nova expressão de uma prática marcante do século que se encerrava: a tendência ao consumo de novidades geradas pela tecnologia, que determinou a apropriação de descobertas científicas e sua adaptação para fins de entretenimento, embalando o mercado de diversões fotomecânicas e catalisando a própria invenção do cinema.

Estas duas primeiras salas temporárias de exibição foram abertas com sessões especiais, restritas a representantes da imprensa e convidados, prática já corrente e que teria continuidade com outros exibidores itinerantes e com os proprietários das primeiras salas permanentes. Tais pré-estréias eram chamadas “experiências”. Tanto em 1896 quanto em 1908 elas representavam uma espécie de teste de qualidade, tanto do ponto de vista técnico quanto da recepção do público, servindo para o exibidor e para os espectadores avaliarem as perspectivas de sucesso do empreendimento. Além do mais, garantiam a divulgação prévia da atração na imprensa, assim como comentários posteriores.

As projeções cinematográficas foram realizadas diariamente em sessões noturnas, curtas e sucessivas, custando o ingresso para as mesmas mil réis. Nos programas organizados por De Paola e Renouleau, predominaram filmes sobre temas da vida cotidiana e a dinâmica urbana moderna, além de registros de espetáculos então em voga, como números cômicos e de dança. A ação predominou não somente nas suas cenas como nos verbos com que foram descritas pelos contemporâneos as imagens vistas durante as projeções. As reações dos espectadores, de forma geral, foram de perplexidade e grata surpresa frente à capacidade de captação fiel do “movimento da vida” que a engenhosidade humana havia alcançado através do cinematógrafo.

A partir de 1897, o aparelho e suas vistas voltaram muitas vezes à cidade, trazidos por exibidores itinerantes e por companhias de variedades que empreenderam distintas modalidades de exibição. Uma delas consistiu em integrar as projeções cinematográficas entra as atrações de longos e variados espetáculos que reuniam gêneros como a prestidigitação, o teatro, o circo, o canto, a dança e as projeções de vistas fixas. Estes espetáculos mistos, em que o cinematógrafo figurava como a atração final da noite, tiveram lugar sobretudo nos centros de diversões já existentes na cidade, como os teatros São Pedro, Variedades, Polytheama e Theatro-Parque. Outra modalidade empregada foi a da exibição do cinematógrafo como atração exclusiva de espetáculos de projeção, que até 1904 incluíram projeções de vistas fixas e que também tinham lugar em teatros locais. Tais espetáculos, que podiam ser diários, reproduziam o modelo de exibição teatral, mais longo, compreendendo intervalos e possivelmente atrações complementares como números musicais. Por fim, as projeções podiam ser exibidas como atrações únicas de pequenos estabelecimentos temporários montados pelos exibidores, cujo funcionamento era diário e noturno, com espetáculos por sessões sucessivas de aproximadamente 30min de duração, realizadas entre as 18h30min e 23h. Este foi, aliás, o padrão adotado a partir de 1908 pelas salas permanentes locais.

Até a abertura do Recreio Ideal, a exibição cinematográfica em Porto Alegre caracterizou-se por um caráter itinerante e temporário e os espetáculos pela descontinuidade e variedade de gêneros. Foram assistidos muitos filmes de Georges Méliès, causando encantamento especialmente aqueles coloridos a mão. Foram conhecidas diversas experiências de sonorização das projeções e introduzidos filmes de metragens mais longas (15min). Ao longo do período, o cinematógrafo foi se especializando como uma nova modalidade de espetáculo visual e se autonomizando de outras práticas espetaculares que lhe foram anteriores e contemporâneas.

A abertura do Recreio Ideal demarcou outra etapa neste processo. Inaugurado como um novo “centro de diversões” em 20/05/1908, ganhou a companhia de mais quatro salas permanentes (Recreio Familiar, Rio Branco, Berlim e Variedades) ao longo do ano e concorreu com exibidores itinerantes que continuaram realizando projeções cinematográficas temporárias na cidade. No seu primeiro aniversário, o Ideal trocou de endereço, deixando o nº 321 da Rua dos Andradas para estabelecer-se no 311-13, na mesma quadra, porque necessitava de instalações mais amplas, o que demonstra o sucesso da casa.

A programação destas primeiras salas costumava compreender cinco “vistas” ou “fitas” (filmes) variadas, incluindo sempre um documentário (“atualidades”), gênero muito valorizado na época, assim como os cômicos, especialmente apreciados pelos espectadores porto-alegrenses. A hegemonia dos filmes produzidos e distribuídos pela francesa Pathé Frères nas telas locais até 1908 seria rompida a partir do ano seguinte, com a introdução no mercado local dos filmes italianos. Já em 1909, aspectos de ordem técnica relacionados à nitidez, ausência de trepidação e ruídos das projeções perderiam importância para fatores como a novidade e variedade temática dos filmes, determinando uma aceleração na periodicidade da renovação dos programas das salas. Na época, os filmes ainda eram exibidos em regime de exclusividade, sendo substituídos inicialmente duas e logo após três vezes por semana.

A introdução dos filmes de arte, mais longos e de narrativas mais complexas, provocaria novas transformações na organização dos programas e nas formas de apropriação do cinema pelos espectadores. Se estes anos iniciais da exibição permanente em Porto Alegre caracterizaram-se pela instabilidade, haja vista o fechamento de três das cinco salas abertas em 1908 e as trocas de proprietário porque passou o Recreio Ideal, também proporcionaram uma maior definição funcional e cultural dos cinematógrafos e a sua inscrição entre as preferências do público local como opção de entretenimento, contribuindo para a estabilização da atividade exibidora na cidade.

(*) Historiadora, doutoranda em História pela UFRGS, onde finaliza tese sobre o tema