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Publicado por em mar 24, 2014 em Artigos |

A longínqua felicidade no universo das Paddys (Café da Manhã em Plutão, 2005)

por Ricardo Zauza (aluno do curso de Realização Audiovisual da Unisinos)

2 Assim como em Tudo Sobre Minha Mãe (de Pedro Almodóvar, 1999), no qual a temática do homossexualismo é abordada ao mesmo tempo com meticulosidade e maestria, Café da Manhã em Plutão é um filme que enxerga o tema de uma forma semelhante, mas com um foco narrativo diferenciado, quase como um fábula. A história leva a conhecimento do público a problemática vivida por tantas pessoas como Paddy, vítimas de si mesmos a ponto de não poderem mudar o que lhes foi imposto e a serem injustiçados por pessoas que lhes consideram anormais.

Baseado no conto de Pat McCaber, a história inicia com uma breve cena em que descontrai o público: Paddy (Patrick), o protagonista, vivido pelo ator Cillian Murphy (de Batman Begins e Cold Mountain), revela-se homossexual aos pedreiros que lhe jogam cantadas, pensando ser ele uma mulher. É deste ponto que Paddy (ou Kittie, como ele mesmo prefere) relembra, em um flashback, o sofrimento que vive desde a infância, no momento em que experimenta as roupas de sua madrasta e é pego em flagrante. É dessa forma, imatura, ingênua e inocente, mas ao mesmo tempo, marcante, que o espectador é apresentado a esse universo. Entretanto, é interessante notar que a história, gradualmente, se torna mais densa, séria, o que exige vontade do público em adentrar nesse universo particular, confrontando problemas difíceis junto ao protagonista. Nesse ponto vemos como Neil Jordan, o diretor, conduziu com perfeccionismo a história.

A infância de Paddy começa difícil: é a época em que ele tenta mostrar quem ele realmente é. Sua família adotiva, uma mãe que o rejeita e uma irmã que o despreza, não tem escolha senão aceitá-lo. Porém, é incrível como o mundo inteiro a sua volta parece enxergá-lo com outros olhos a partir do momento em que ele se revela homossexual. Ele não é mais alguém com um futuro e sim um excluído. Seus amigos de infância, Irwin, Lawrence e Charles são a base afetiva de sua vida. O amor que Paddy sente por essas pessoas, porém, se transformará em dor à medida que perder alguns deles. No desenrolar do filme, cria-se a consciência de que o protagonista se torna cada vez mais só em um mundo que ele descobre ser cada vez maior, aumentando obrigatoriamente sua responsabilidade.

Desde cedo, Paddy age sem pensar nas conseqüências. Se ninguém o ama de verdade, então, tudo o que vier será lucro. Sua sensibilidade revela que ele apenas gostaria de ser amado do mesmo modo com que as mocinhas o eram das novelas que ele via durante a infância. Paddy também recorre, constantemente, à religião, procurando amenizar sua ansiedade de independência. Quem o reconforta, sempre, e o salva dos castigos causados por sua irreverência, é o padre Liam (Liam Neeson, de Os Miseráveis e Batman Begins). Entretanto, Liam só revela-se realmente útil quando Paddy descobre que ele é, na verdade, seu pai biológico. Paddy vê nele a possibilidade de encontrar uma mãe arrependida do abandono que fez no passado. As pistas não são muitas. Tudo o que Paddy têm é um endereço incerto e um fio de esperança.

Indefeso de si mesmo, injustiçado pelas pessoas que não lhe compreendem e privado dos seus direitos como gente, ele decide ir embora para procurar sua mãe biológica. The Phanton Lady (“a dama fantasma”), como ele usualmente costuma descrevê-la, é o seu grande objetivo. Na verdade, ele procura por uma mulher que se chama Eily Bergin (Eva Birthistle) e que, segundo o que sabe, é parecida com Mitzi Gaynor, famosa atriz de novelas da década de 50 e 60. Novamente, percebemos a relação do protagonista com o mundo imaginário e novelesco. Ao mesmo tempo em que Paddy se mostra inocente e ingênuo, quase infantil, mesmo para sua adolescência, é obrigado a amadurecer rapidamente. Prova dessa infantilidade do personagem é quando encontra alguém que o considere: confia imediatamente. E isso acontece com todos os heróis que o salvam nos momentos de sofrimento. É dessa mesma maneira que ele se une aos motoqueiros hippies. Usando drogas, observando a noite estrelada e imaginando como é a felicidade, eles sonham realizar o impossível e alcançar algo que está muito longe: assim como o é tomar um café da manhã em Plutão. É isso que Paddy procura: tentar realizar o que ele considera impossível, no caso, recuperar sua mãe.

No seu caminho, surge um grupo musical chamado Mohwaks, por cujo vocalista, Billy (Gavin Friday, de Moulin Rouge), Paddy se apaixona. Apesar do romance não dar certo, Paddy consegue um lugar para viver, o trailer de Billy. Mais tarde, o que lhe parecia um presente tão doce será transvertido a um pesadelo. O trailer em que mora é um depósito de armas secreto. Prova de que Billy está envolvido com a “quase guerra civil” que assola a Irlanda em seus conflitos religiosos e políticos e pela presença da ameaçadora Inglaterra no Nordeste do país.

Este é o cenário onde se passa toda a parte principal da história e que é responsável por grande parte do sofrimento do personagem. Por causa da briga religiosa e política entre fundamentalistas, que privilegiavam os protestantes, e os nacionalistas, que defendiam uma nova reforma, a Irlanda do Norte (através do Irish Republican Army) foi palco de brigas e atentados contra civis e inocentes. Apesar de não mostrar o confronto em sua forma mais violenta, assim como em As Cinzas de Ângela (de Alan Parker, 1999), o filme não deixa de abordar as conseqüências causadas nas cidades pela decadência econômica e social, e pouco ressarcida pelo poder político nacional. A fome, o desemprego e a emigração, que no caso de Paddy, é uma opção de fuga.

Desde a infância, Paddy e seus amigos vivem as conseqüências da guerra. Preferem fugir, a morrer pela Irlanda. Durante o filme, o assunto vem à tona apenas algumas vezes, mas sempre surpreendendo. Primeiro é a morte de seu amigo Lawrence, causada por uma bomba, o que faz Paddy se desfazer das armas que lhe fizeram companhia durante noites. Billy o deixa também. Depois, quando viajar para Londres para procurar sua mãe, será a vez dele próprio se tornar vítima da guerra numa surpresa totalmente inusitada.

Londres é onde Paddy passa a parte mais difícil de sua vida. Assim que chega, tem que confrontar a solidão. Para conseguir se manter, faz pequenos bicos. Mais tarde, além de não encontrar sua mãe, tenta recorrer à venda de seu corpo, porém, desiste rapidamente da idéia ao sofrer tentativa de homicídio de um maníaco. Consegue fugir, e, já no dia seguinte, novamente abalado pelo terror humano, vai parar nos braços de um mágico chamado Bertie, um homem simpático que diz só querer ajudá-lo.

A linguagem do filme é muito intuitiva e apaixonante, mas não tão experimental quanto a direção de arte que explorou o lado otimista das coisas num filme melodramático. A vida de Paddy se desdobra com muitas surpresas e intervenções do acaso. Usando muitas elipses e locações externas, a história corre de forma rápida, poética e ao mesmo tempo preservando um tom humorístico. Através das ruas de Londres, da prisão, e dos bordéis, Paddy descobrirá muito sobre si mesmo, até, finalmente, chegar ao verdadeiro endereço de sua mãe.

Vagarosamente, ele se dá conta de que não é mais uma criança. Conhecer seu irmão, que, inclusive, tem o mesmo nome que o seu, provocará em Paddy a sensação de ser substituído, de estar totalmente descartado e o fará repensar toda sua vida.

O filme, além de contextualizar um assunto complicado em uma época e em um lugar que também viviam mudanças importantes, tem a intenção de comparar o preconceito daquela época com a atual e demonstrar como a consciência das pessoas sobre o assunto ainda é insuficiente e como o otimismo pode influenciar no alcance das coisas impossíveis.

Café da Manhã em Plutão (Breakfest on Pluto)
Direção: Neil Jordan
Roteiro: Neil Jordan e Pat McCabe
Com: Cillian Murphy, Morgan Jones, Eva Birthistle, Liam Neeson, Mary Coughlan, Conor McEvoy, Ruth McCabe e Owen Roe
País: Irlanda/Inglaterra
Ano de lançamento: 2005
Disponível em DVD no Brasil
Duração: 135 minutos