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Publicado por em mar 25, 2014 em Artigos |

A Grande Marcha da Tropa

t2por Marcelo Perrone

“O ciclo se encerra aqui…”. É o que garante o diretor José Padilha no Twitter, jogando água fria em quem já pensava ser inevitável um Tropa de Elite 3 diante do estrondoso sucesso da parte 2, que já somou mais de 4 milhões de espectadores em apenas 10 dias em cartaz. Mais que ser o maior público do cinema nacional em 2010, superando Nosso Lar e Chico Xavier, Tropa de Elite 2 se encaminha para bater o recorde de Se Eu Fosse Você 2, o filme nacional mais visto desde a chamada retomada da produção nacional, nos anos 1990, comédia assistida nos cinemas por 6,1 milhões de pessoas.

Para dar conta da demanda, os produtores de Tropa de Elite 2 ampliaram o circuito exibidor de 703 para 739 salas, e a média de espectadores continuou altíssima (1,5 mil por sala), segundo o boletim de ontem do portal Filme B. Já tem gente prevendo que o filme vai tirar de A Dama do Lotação (1978), com 6,5 milhões, o posto de segundo filme brasileiro mais visto em todos os tempos, segundo as estatísticas oficiais da Ancine – o primeiro, Dona Flor e seus Dois Maridos (1976), com 10,7 milhões.

Vale lembra que a Ancine considera os dados registrados desde 1970. Produtores e historiadores avaliam que, extra-oficialmente, pela falta de dados confiáveis, alguns filmes populares lançados antes desse período, como as produções da Atlântida ou os protagonizados por Mazzaropi, podem ter obtido público superior a 10 milhões.

Falando em Tropa de Elite 2, segue o texto publicado na edição de Zero Hora no dia 14/10/2010. Texto de crítico integrante da ACCIRS já publicado em outro veículo da imprensa e autorizado para publicação no site da associação.

O bandido de farda e fatiota

Atire a primeira moeda quem não ache merecido político safado levar um corretivo, do corrupto cara-de-pau que se locupleta com o dinheiro que falta à saúde, à educação e à segurança àquele que, numa escala de desvio moral ainda mais assombrosa, encarna a face engravatada de uma cadeia criminosa. Compreende-se, portanto, a catarse que tem provocado em algumas sessões de Tropa de Elite 2 a cena em que o agora tenente-coronel Nascimento esbofeteia e enquadra um deputado dupla face, tipo que posa de defensor da moral e bons costumes na fachada pública mas rasteja nas sombras do submundo sustentado por milicianos que lhe garantem votos em troca do passe livre para aterrorizar comunidades carentes do Rio de Janeiro. Se esse mesmo público refletir acerca de seu papel nessa estrutura corroída, uma vez que o político sem-vergonha é reflexo da sociedade que nele vota, menos mal.

A reação a essa cena de Tropa de Elite 2 é representativa da eficiência com que o diretor José Padilha manipula as emoções do espectador, repetindo a excelência técnica e narrativa vista no primeiro filme – que, não custa lembrar, foi consagrado internacionalmente com o Urso de Ouro no Festival de Berlim por um júri presidido por Costa-Gavras, grande mestre do cinema político. A empolgação do público é espelhada na percepção de impunidade como regra nas instâncias superiores do poder. É como se, nessa reação instintiva primária, servisse à plateia não habituada a ver o mau político atrás das grades vê-lo ao menos ser malhado como um Judas, aos cascudos e tabefes.

Padilha já provocou reações extremas com dois filmes nos quais, paradoxalmente, suas intenções foram parecidas. Se no documentário Ônibus 174 ele foi acusado por setores mais conservadores (vá lá, à direita), de vitimizar o sequestrador que provocou a morte de uma refém, com Tropa de Elite o ataque veio dos mais à esquerda, que desaprovaram a figura de Nascimento agindo como justiceiro chancelado pelo Estado, sem matizar causa e consequência da violência urbana com os filtros das questões sociais. E o fato de o herói seguidor de lema “direitos humanos é para humanos direitos” ter virado um ídolo pop no Brasil tornou ainda mais emblemática a polêmica em torno do filme.

Padilha coloca seu protagonista, novamente encarnado por Wagner Moura, numa cruzada quixotesca contra o “sistema”, conceito em geral tratado de forma vaga mas que em Tropa de Elite 2 tem as peças de sua engrenagem bem definidas. No primeiro filme a luta do bem contra o mal foi representada numa camada mais epidérmica, opondo, de um lado, traficantes, policiais corruptos e consumidores de drogas e, do outro, a força purificadora dos caveiras do Batalhão de Operações Espaciais (Bope) comandados pelo truculento Nascimento. Tropa de Elite 2 coloca novas peças no tabuleiro, e quem as movimenta estão tanto nas bocas de fumo das favelas quanto nos gabinetes de Brasília. O esculacho é democrático, do traficante pé-de-chinelo ao governador.

A entrada em cena dos homens de fatiota eleva o longa à altura dos bons filmes de mafiosos e dos marcantes thrillers políticos que o cinema italiano produziu nos anos 1970. Ocupando um cargo na Secretaria de Segurança do Rio, Nascimento decide peitar inimigos mais poderosos: os policiais corruptos das milícias, marginais com carteiras funcionais, e os políticos que esses ajudam a eleger em currais eleitorais nos quais impõem o terror e enriquecem extorquindo moradores em troca de proteção. A representação dramatúrgica que Padilha faz desse círculo de violência institucionalizada tem suas liberdades. Uma das mais evidentes está no personagem do antagonista de Nascimento, o político de esquerda Fraga (o ótimo Irandhir Santos). Apresentado como a caricaturado ativista social “defensor de bandido e de maconheiro”, Fraga torna-se inimigo também no front doméstico, casando-se com a ex-mulher do oficial casca-grossa. Mesmo que Padilha corrija a rota dos personagens no decorrer do filme, essa proximidade é um tanto exagerada – assim como representação da promiscuidade entre o poder público e as milícias na improvável cena em que o governador do Rio é recebido em um pagode com o chefão local dando tiros de pistola.

Mas são pormenores numa encenação de resto primorosa em seu registro hiperrealista. Sem ser tão violento quanto o longa original, Tropa de Elite 2 é contundente como carta de intenções de seu diretor. Nascimento, para Padilha, é voz da consciência de uma sociedade acuada e é tão imperfeito quanto ela. Como versão nacional de Jack Bauer, promove sua faxina moral por códigos que o tornam um sujeito tão necessário como perigoso.

Publicado em Zero Hora dia 14/10/2010. Texto de crítico integrante da ACCIRS já publicado em outro veículo da imprensa e autorizado para publicação no site da associação.