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Publicado por em mar 23, 2014 em Artigos |

A feminilização das culpas da guerra (O Leitor, 2008)

por Marcelo Oliveira da Silva

O Leitor é aquele tipo de adaptação cinematográfica que reverencia a excelência do livro original. Der Vorleser, escrito em 1995 pelo jurista alemão Bernard Schlink, alcançou o topo da lista dos mais vendidos do jornal New York Times. O filme do diretor Stephen Daldry mantém uma característica rara dessa obra traduzida em 39 línguas e premiada na Itália, França e Japão: as das histórias que informam mais sobre o contexto histórico, no caso a reconstrução do caráter nacional alemão após o genocídio de milhões de judeus, exatamente quando seus protagonistas silenciam. Aqueles que falam, relevam mais sobre seus contemporâneos do que sobre si próprios.

Muito já foi discutido sobre a culpabilidade alemã, mas o livro de Traudl Jung Eu Fui Secretária de Hitler (2002) parece ter aberto uma perspectiva completamente nova sobre o tema, onde o olhar feminino vem revelar raízes ocultas do momento mais sombrio do século 20. O relato de Traudl, também transformado em documentário, nos aproximou das personas daqueles vultos, de suas vidas fora do horário comercial. Isso catalisou o elemento mais ascinante do filme A Queda – Os Últimos Dias de Hitler. A confissão de Traudl, de que poderia e deveria ter resistido da mesma forma que sua contemporânea Sophie Scholl, desmoralizou os que ainda insistiam em alegar que nada sabiam (como a cineasta Leni Riefenstahl) e finalmente motivou a produção de um filme sobre aquela estudante que desafiou sozinha a ditadura nazista.

Nessa mesma trilha, O Leitor nos aproxima da visão de mundo que era possível a uma mulher pobre e analfabeta (Hanna Schmitz, interpretada por Kate Winslet), que engajou-se no exército e foi colocada na guarda feminina dos campos de concentração nos anos 40, procurou refazer sua vida na década seguinte e na metade do anos 60 se vê transformada numa espécie de bode expiatório de uma consciência nacional culpada. A história é contada por Michael Berg (uma espécie de alter-ego de Schlink, interpretado na juventude por David Kross e na idade adulta por Ralph Fiennes) que na puberdade foi amante de Hanna durante um verão. O passado de carcereira da ex-amante ele escobre durante os julgamentos de crimes nazistas em Nüremberg, que assiste como estudante de direito.

A produção é no geral bem cuidada, a direção de atores está muito bem, mas certamente há deslizes formais. O uso de trilha sonora até nos momentos em que o jovem Michael deliciava-se na banheira de Hanna fala por si só e infelizmente não foi a única intrusão destoante de uma trama tão sofisticada. Entretanto, o que há de raro e digno de nota nessa história é a maneira como se desabrocha na cabeça do espectador um diálogo com aquilo que os protagonistas deixam de fazer ou dizer.

O que motiva o estoicismo de Hanna, que não revela sua condição de analfabeta para se livrar da prisão perpétua? Um inquebrantável orgulho ancestral? Uma resignação ao destino que aquela catarse nacional disfarçada de julgamento lhe reservou de antemão? Uma tentativa sincera de pagar pelos erros que apenas ela teve coragem de admitir? O que explicaria as omissões de Michael durante o julgamento e sua reticência na reaproximação 20 anos depois? Incapacidade pessoal de separar as circunstâncias da carcereira dos anos 40 de sua amante dos anos 50? Um dilema ético-filosófico típico de juristas? Uma conveniente adaptação ao clima reinante entre seus contemporâneos no sentido de atribuir culpas a granel e sepultar de vez quela purgação dilacerante dos crimes de seus pais e avós?

É precisamente nesse gesto de estimular reflexões em lugar oferecer respostas que reside a força e a sagacidade da realidade recriada no filme. O que levou aquelas alemãs a compactuar com o genocídio de judeus? Questões complexas exigem respostas complexas e mesmo quem retornou dos campos de concentração, como diz no filme a escritora Illana Mather (parafraseando Primo Levi), voltou de lá sem palavras.

O Leitor (The Reader)
Direção: Stephen Daldry
Roteiro: David Hare
Com: Ralph Fiennes, David Kross, Kate Winslet, Susanne Lothar, Lena Olin, Bruno Ganz
País de produção: EUA/Alemanha
Ano de lançamento: 2008
Duração: 124 minutos