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Publicado por em fev 4, 2018 em Artigos |

A alfabetização do olhar começa na infância

Por Fatimarlei Lunardelli, especial para o site da Accirs.

A iniciativa mais comum de aproximação do cinema com a educação é o filme usado como mera ilustração de conteúdo em sala de aula. Não é o caso do Programa de Alfabetização Audiovisual que em 2018 completa 10 anos e tem uma abrangência que se desdobra em uma desafiadora educação do olhar. A importância que assumiu na educação e na cultura em nossa sociedade levou a Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul a destinar o Prêmio Luiz César Cozzatti – Destaque Gaúcho 2017, ao programa realizado pelas Secretarias de Cultura e Educação do Município de Porto Alegre, em parceria com a UFRGS e financiado pelo Ministério da Cultura, Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural.

Programa de Alfabetização Audiovisual Cinemateca

Crianças na Cinemateca Capitólio

A história do Programa remete à metade dos anos 90, quando Bia Barcelos, então Coordenadora de Cinema, Vídeo e Fotografia, buscou na Cinemateca Uruguaia parceria para exibir filmes infantis ao público porto-alegrense. O Cine Criança, mostra de filmes que exibiu uma seleção do festival uruguaio Divercine, deu início ao que viria a ser o Programa de Alfabetização Audiovisual hoje consolidado. A aproximação com a Secretaria Municipal de Educação, por meio de parceria entre Maria Angélica dos Santos e Andréia Todeschini Merlo, em 2008, amplia e aprofunda a iniciativa, configurando a articulação institucional que é a marca do projeto.

Mais de 50 mil crianças e jovens já passaram pelas salas do circuito formado pela Sala Redenção da UFRGS, P. F. Gastal, Cine Bancários e Cinemateca Capitólio. 80% das escolas participantes são da rede municipal. Isso significa que mais de uma geração de porto-alegrenses tem na memória a experiência incomum e excitante de ir ao cinema com a escola e conhecer lugares pelos quais dificilmente andaria.

O deslocamento dos estudantes até a sala de cinema é um diferencial que transforma o ônibus que traz a garotada em “equipamento pedagógico”, nas palavras de Maria Angélica dos Santos. Ela já trabalhava com educação e cinema na Secretaria Municipal de Educação quando se transferiu para a cultura. Vinculada ao projeto desde o início, é a alma mater de uma equipe que envolve a Coordenação de Cinema, Vídeo e Fotografia, a Cinemateca Capitólio, a Secretaria Municipal de Educação e Cultura e a UFRGS. A parceria com a Universidade iniciou nos anos 90 com a Pró-Reitoria de Extensão e foi ampliada em 2010 com a Faculdade de Educação. Através da UFRGS o programa passou a contar com financiamento federal, hoje oriundo do MinC, que entre outras coisas garante o transporte dos escolares para a sala de cinema.

A alegria do cinema e a preparação dos professores

Programa de Alfabetização Audiovisual

Espanto na sala de cinema

A proposta inicial baseada no tripé do acesso, reflexão e produção de filmes se mantém. Envolve uma perspectiva política que se desdobra na formação de público ao estimular a ida à sala de cinema, na divulgação do cinema nacional e no contato com filmes infantis de todo o mundo. A curadoria que era feita por Marcus Mello agora é de Leonardo Bomfim, que também é programador da Cinemateca Capitólio. A programação de filmes enfrenta o desafio de buscar obras adequadas a um público muito especial de pequenos espectadores, o que impõe, de imediato, que sejam dublados e envolvam uma dimensão pedagógica sem perder o divertimento de uma sessão de cinema.

Se, por um lado, filmes como As aventuras do avião vermelho, animação gaúcha baseada em Erico Veríssimo, têm acolhimento garantido, obras como Mutum, de Sandra Kogut, constituem-se em apostas arriscadas. E geram um debate que resulta produtivo sobre as possibilidades transgressivas do cinema. Uma das ideias originais da programação é a exibição de fragmentos selecionados de filmes que são obras-primas. Incluídos na mostra de curtas-metragens já foram exibidos Tempos modernos, de Charlie Chaplin, Cantando na chuva, em que Gene Kelly brinca com o guarda-chuva e a água em momento antológico do cinema, e o segmento dos pessegueiros em flor de Sonhos que o mestre Kurosawa transformou em poesia visual. São centenas de curtas, médias e longas-metragens usados para a leitura das imagens que constituem a cultura audiovisual da qual fazemos parte.

Em junho de 2014 foi promulgada a lei 13006/14, que prevê a exibição obrigatória de duas horas mensais de cinema nacional nas escolas de educação básica do país. O Programa então abriu nova frente e começou a preparação dos professores para a interpretação das imagens em movimento. O laboratório de estudos em audiovisual Vagalume, inaugurado em 2015, é um espaço de formação docente com pequenos cursos baseados na ideia de que o cinema na escola não pode ser mera ilustração para conteúdos. Sendo arte e linguagem, cabe examinar qual é sua especificidade, compreender como é produzido, aspectos de sua estética e seu discurso.

Outra ação é o ciclo de filmes e debates Mais Cinema, destinado a grupos de alunos e professores visando o aprofundamento de temas selecionados. Já vieram pesquisadores como Cezar Migliorin, da Universidade Federal Fluminense, falar sobre cinema e direitos humanos e foram homenageados cineastas do Rio Grande do Sul como Gustavo Spolidoro e Otto Guerra. São atividades gratuitas e abertas ao público em geral.

Comemoração dos 10 anos

A programação de aniversário do Programa de Alfabetização Audiovisual, em abril, quer valorizar a experiência acumulada dos professores da rede municipal ao longo desses anos. Esse vai ser o tema do 3º Seminário Internacional de Cinema e Educação. Os seminários têm sido encontros de formação e debate. Do primeiro encontro resultou o livro Escritos de Alfabetização Audiovisual, publicado em 2014 pela Libretos. O segundo, debatendo a lei do filme nacional em sala de aula quatro meses depois de promulgada, resultou no livro digital Dentro e fora da lei, disponível no repositório digital da UFRGS. Os seminários, que trazem convidados internacionais, são momentos para conhecer práticas semelhantes em outras partes do mundo e debater pressupostos teóricos de aprofundamento das relações entre cinema e educação.

Muitas pessoas já passaram pelos bastidores deste programa vasto em suas ambições e pleno em realizações. Angelene Lazzareti é pessoa chave da produção e Juliana Costa fez de sua participação no grupo de trabalho a dissertação de mestrado Exibição de filmes em contexto escolar: entre o Programa de Alfabetização Audiovisual e a sala de aula, defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS no ano passado. São várias frentes de atuação. A principal atividade, aquela que está no centro do Programa, é a exibição dos filmes na sala escura do cinema. A criançada vai como a uma  festa, parece só diversão. De volta à sala de aula, os alunos são desafiados a pensar sobre as emoções que sentiram. Na leitura do significado das imagens se processa a alfabetização audiovisual.